Contos Suicídas
quinta-feira, 18 de agosto de 2016
ACERTO DE CONTAS COM DEUS
Ângela arrumava o colarinho do filho enquanto ditava pausadamente os últimos sermões:
- Tá escutando né ?... Nada de falar com estranhos, só saia da escola comigo, só sai quando eu for te buscar, tem muita gente ruim nesse mundo, tá escutando né menino ?
- Ai mainha !!! - disse Artur com ar de reclamação.
Mesmo assim, aquela mãe super cuidadosa continuava com os ensinamentos:
-Vê se come a merenda da escola viu... você sabe que não tem comida aqui em casa. Quando for por a comida na boca olha bem antes, pra não comer bactéria. - finalizou a mãe.
Ângela sabia que estava exagerando ao falar tudo aquilo para uma criança de apenas 7 anos, porém o que predominava na mente dela era uma única palavra: proteção !
Artur era seu filho mais velho, o primogênito . Um menino preto de cabeça raspada à zero na maquininha, nariz achatado e boca grande, olhos pequenos e amarelos, orelhas que lembravam as dos pitbulls, barriga inchada e um aspecto raquítico como se estivesse desnutrido e com os ossos marcando seu corpo. O que compensava se aspecto magro e fraco, era sua força de vontade e inteligência. Aos cinco anos de idade já sabiam ler e escrever, incentivado por sua mãe, alimentava o desejo de tornar-se doutor, e assim, comprar uma casa, um carro e muita comida para sua família e aquele primeiro dia de aula era o passo inicial daquela importante missão que estava disposto a cumprir. As aulas na escola do bairro começavam às 13 horas, mas àquela altura o menino preto já encontrava-se ansioso. Tudo o que seus amigos diziam nas brincadeiras de rua, eram que na escola havia muita comida,muitas brincadeiras, várias quadras pra jogarem bola, entre outras coisas que agradava meninos e meninas das periferias brasileiras.
A hora de sair de casa se aproximava. Sua mãe continuava falando alto e intensamente enquanto a mente de Artur se encontrava bem longe dali. Porém, apesar da pouca idade, o menino tinha consciência dos perigos de uma criança ficar longe da mãe por horas seguidas em lugares que não conhecia. Decidiu escutar com paciência sua mãe ditar-lhe as regras...
- Filho, obedece a professora viu. Trate ela bem, porque a professora vai te ajudar a virar um homem bom e justo. Desse jeito você vai poder me ajudar quando eu estiver velhinha. A professora é boa, ela é sua amiga, a professora é...
- Ai mainha, ta bom ! - Resmungou o menino já irritado - Segunda vez que a senhora diz isso pra mim, que saco !
- Filho, ouve a mamãe, você é o meu filho mais velho. Quem vai ajudar a mamãe quando ela estiver doente ? Deus não gosta de filho rebelde. - Expressava-se a mãe com ternura e tristeza de quem iria ficar longe do filho por horas pela primeira vez.
- Eu sei mainha. Mais cê tá exagerando um pouquinho, e...
O telefone da mesa começa a tocar e a mãe corre pra atender.
- Alô quem fala ?
- Alô, aqui quem fala é da escola Reinaldo Saldanha, aqui do Jardim Nossa Senhora de Fátima. Estamos ligando para todos os pais dos alunos e alunas matriculados nessa escola. Queremos informar-lhe que houve um certo atraso pontual do repasse da prefeitura para a compra da merenda escolar, e que...
- Nossa moça, quer dizer que as crianças vão passar fome na sala? - interrompia numa mistura de raiva e preocupação.
- Não necessariamente Senhora - respondeu a funcionária de forma calma e polida - Para isso estamos recomendando para todos os pais e mães dos alunos, à prepararem um lanche e darem para as crianças levarem. Alguns professores da rede levantaram até a hipótese para recomendarmos os pais e mães, que tragam seus filhos e filhas à escola já almoçados de forma reforçada...
- Minha fia, cadê o dinheiro dos meus impostos ? - interrompeu a mãe já revoltada - Eu paguei o uniforme, os cadernos, os lápis, e ainda tenho que pagar a comida? Não é escola pública?.. Meu Deus...
- Senhora, eu não tenho condições de informá-la devidamente sobre estes assuntos burocráticos. Minha função é apenas informar-lhe das decisões de meus superiores. De todo modo, muito obrigado pela sua atenção. Tenha um bom dia.
- Superiores ? Onde que eles estão ? Chama eles ai pra mim ter um papinho com eles. - dizia a mãe num tom desafiador.
Seus esforços para ter um dialogo com os responsáveis por aquelas baboseiras foram em vão, tudo o que ouvia do outro lado da linha era o sinal sonoro do final da ligação.
Logo após a despedida abrupta da funcionária da escola, Ângela encontrava-se transtornada. Sentiu um frio na barriga assim que lembrou-se do que tinha na geladeira, ou melhor, daquilo que não tinha nela. A geladeira era ocupada apenas por água congelada, meio repolho, alguns poucos centímetros de linguiça calabresa e um pote com uma ínfima quantidade de farinha de mandioca. Aquele cenário desolador acendera a chama do ódio em sua alma. Logo no primeiro dia de aula de seu filho mais velho mandaria-o com fome até a escola, ou no máximo, uma má alimentação. Meio que automaticamente, pensava tudo isso e ao mesmo tempo abria o armário, pegando facas, pratos, colheres, vasilhas, para assim , tentar preparar uma semi-refeição ao seu filho.
Ângela lavou o repolho na água corrente, depois picou a linguiça e peneirou a farinha. Em seguida, jogou tudo na frigideira, misturou, tacou uma pitada de sal e um pouco de azeite. Em seguida chamou seu filho:
- Artur, levanta, vem comer, a mamãe vai te dar um lanche, vem logo que cê ta atrasado !
Enquanto o pequeno menino caminhava em direção ao fogão, as pernas daquela mãe tremiam, as entranhas começavam-se à relaxar, o frio possuía as partes íntimas, criando a péssima sensação de estar defecando. Aquilo era o grande efeito de medo percorrendo o corpo daquela mulher, levando-a à delírios enquanto acordada, recompõe-se apenas com uma cutucada em seu braço.
- Mainha, mainha ! Cê tá bem ? O que tem pra comer ai ? Mainha? Acorda mainha...
- Oh meus Deus ! Toma aqui. - tisc tisc tisc - Mamãe já colocou no prato pra você, viu ? - dizia a mãe tentando disfarçar seus delírios.
Ao observar aquele pequeno menino comendo, Ângela lamentava-se por não ser uma mãe completa, uma mãe igual aos filmes e novelas, uma mãe que fazia café da manhã cheio de pães, frutas, iorgutes, leite, queijos, frutas, etc. Queixava-se por não ter uma geladeira cheia de verduras, legumes, carnes. Se tivesse tudo isso, iria preparar 5 refeições por dia, e toda sua família nunca mais iria passar fome novamente. Mas a realidade não era assim, era bem mais dura e cruel, e ela sabia perfeitamente. Sabia que a culpa disso estava em alguém, e essa pessoa era sua própria mãe, que por não à ter deixado estudar e conquistado um bom emprego. Ao invés de ir para a escola, a menina era obrigada a catar papelão, latinha e todo material reciclável, e assim, complementar na renda de sua família. Foi uma infância infeliz, cheias de responsabilidades que só adultos poderiam ter. Ao tornar-se mãe, reacendera em si a chama da vida, estava disposta a dar do bom e do melhor ao seu primogênito. Mas por enquanto, sentia que estava falhando na missão.
- Mainha, terminei ! Cê vai me levar hoje ?
- Sim, vou te levar.Vá escovar os dentes. Não esquece de passar creme nas canelas por que elas estão bem cinzas, não quero que ninguém ache que meu filho não tem mãe. - respondeu enquanto colocava o turbante pra sair.
***
O cenário até a escola era comum para Artur. Ao passar pela Igreja Católica que ficava em sua rua, descia até a pracinha, à atravessava até o coreto, onde logo havia o ponto de ônibus, virava à direita e pegava a Avenida Aimará, descia ela até a esquina do mercadinho, lá encontravam as esquinas da Avenidas Aimará e Rotary, onde atravessavam a última. Desceram uma rua de mão única, andavam cerca de 500 metros até uma ponte de madeira. Ao passar por essa ponte, o menino sentiu medo, pois a ponte rugia e estava apodrecida, tentava evitar, mas sempre acabava olhando pra baixo, onde via cachorros, gatos, pombos, urubus e ratos (vivos e mortos), esgoto industrial, entulho e todo os tipos de dejetos humano, entre tantos outros restos descartados e criados no bairro e arredores. Terminando de passar pela ponte, mãe e filho pegava a última rua à esquerda. logo após essa rua, começava uma área denominada de "alta periculosidade" pelas autoridades públicas. Justamente por conter pessoas com extrema ausência de educação, empregos dignos, incentivo à cultura, acesso à saúde de qualidade, mobilidade urbana, entre outros serviços básicos essenciais para todos os cidadãos brasileiros.
Artur estava empolgado. Por todo momento imaginava-se na sala de aula, obedecendo a professora, e o mais importante, comendo a merenda. Sim, a famosa merenda que toda criança quando entra pela primeira vez na escola sente vontade de experimentar e apreciar.
As outras crianças sempre estavam com coisas de comer em suas mãos, menos Artur, que ao passar por algum mercadinho de esquina, doceria ou sorveteria, disfarçava e fingia não estar com vontade, ele sabia já naquela idade, que dificilmente sua mãe teria condições de comprar, logo preferia sem exitar, poupar a mãe de tal desconforto, tinha também a influência que recebera em casa, pois foi educado à não ser pedinte, ainda mais na rua e na frente de todos.
Ao visualizar a escola, o futuro aluno do sistema neo-escravista brasileiro, começa a sentir-se mal, um frio na barriga o dominava completamente. Ao passo que observava os meninos parecidos com ele jogando bola na rua de barro, sentia-se pequeno e frágil, pois os outros garotos de sua idade eram bem maiores. Já começava a se imaginar apanhando dos maiores, dos mais bravos, mais valentes...
- Man-Man-Mainha, que horas você vem me buscar ? - tentava expressar-se enquanto se esforçava para segurar o choro ao mesmo tempo que passava a mão no rosto para secar os olhos marejados.
Em todo instante Ângela observava e refletia sobre o que via diante de seus olhos. Preocupava-se em notar a primeira impressão que seu filho estava tendo em seu primeiro dia de aula. Ao ouvir as palavras e olhar a feição do menino, procurou respondê-lo rapidamente sem mostrar-se distraída.
- Eu vou chegar cedo pra te buscar. Não esquece, só sai da escola quando você me ver, presta atenção na quantidade de pessoas ao seu redor, e mais, na fisionomia de todas elas. Nas cores dos cabelos, tênis, mochilas, gírias...
- Mainha, você sabe qual é minha sala ? - perguntou o menino preocupado.
- Vixi, num sei, vamos lá ver ?!
Adentraram o pátio central. A quantidade de pessoas lá dentro era bem maior. Era um local mais escuro, abafado e sem circulação. Aquele ambiente era pesado, quem tivesse problemas com lugares fechados, em instantes entraria em pânico. Aos que possuíam alguma doença respiratória, não aguentariam por muito tempo. (!) Em cada lado do pátio havia os banheiros, no direito o feminino e no esquerdo o masculino. O cheiro fétido e podre exalava dos dois ao mesmo tempo, dava ao ambiente um aspecto de abandono.
Artur notou cada banheiro: primeiro foi o feminino, onde lá observava a quantidade de meninas, que eram bonitas ao seus olhos devido a interpretação do ideal de mulher. Já o masculino o deixou bem espantado, principalmente à respeito das feições dos meninos ali parados na porta daquele banheiro. Vários deles com cicatrizes e hematomas no rosto, nos braços e pernas, nas mãos, na cabeça, havia um deles que usavam até muletas. A esperteza daquele menino o levava à lembranças que o faziam lembrar dos programas de TV que via todo dia ao fim da tarde. O programa sempre mostrava homens e mulheres parecidos com as pessoas que estavam ali à sua volta naquele pátio, sentiu muito medo pois o que era relatado nesses programas policialescos e sensacionalistas era o ideal de "marginal", de "assassino", de "psicopata", de "delinquentes", de "escória da sociedade", todos eles eram muito parecidos com os seus futuros amigos de colégio.
Tudo isso era novo para aquele menino. Ao mesmo tempo que sentia medo, sentira também fraqueza no corpo, sensação de querer volta atrás, aquela tal empolgação pra sair de casa e ir pra aula desaparecera completamente. A essência de Artur começava naquele momento, à se moldar conforme conhecia o mundo à sua volta.
- Olha mainha, várias listas, vamos lá pra ver se meu nome ta lá ?
- Ta, vamos logo porque já está todo mundo indo pras salas de aula.
As listas ficavam no final do pátio à esquerda. Era uma amontoação imensa de pessoas, o que dificultava o campo de visão. Com muito esforço, mãe e filho conseguem localizar a turma e a sala de Artur: 1° C, sala 13, Professora Jussara.
***
- Olá pessoal, sou a professora Jussara, vou ser a professora de vocês durante o ano - disse a professora demonstrando calma e serenidade.
- Vamos começar falando o nome de vocês, vamos começar por esse menino lindo aqui - a professora aponta o dedo para Artur .
O menino mesmo nervoso e tremendo por dentro, lutava para não demonstrar nada, imaginava que era preciso ser frio, aprendera isso com o próprio pai, pois ouvira desde cedo que homem que é homem não podia demonstrar emoções, e isso era cumprido à risca pelo garoto.
- Me-me-meu nome é Ar-Ar-Artur - disse possesso pela gagueira e o nervosismo.
- Huuuum, Artur, huuuum... que nome lindo não é classe ?
Ninguém ousa responder, o silêncio era o nome da vez naquela sala. A professora tenta de outro modo.
- Artur, quantos anos você tem ?
- Te-te-tenho oito....
- Artur você está nervoso ?
- Uhuum "fessôra"....
- HAHAHAHA, que menino lindinho, seja bem-vindo.
- Valeu "fessôra".
A professora continua.
- Muito bem, o próximo. Qual é o seu nome ?
- Carolina.
- Bárbara.
- Larissa.
- Pabla.
- Caio.
Artur observava tudo. A tremedeira passava aos poucos. Olhava e admirava aquela professora que era parecida com sua avó. As duas usavam um tipo de pano na cabeça que mais parecia uma coroa. As duas tinham a pele muito preta. As duas tinham dentes amarelados. As duas eram pequenas fisicamente e gigantes sentimentalmente. Tudo isso deixava o novo aluno da classe da primeira série mais à vontade, tudo nela parecia familiar, porém o garoto continuava não demonstrando emoções, persistia na seriedade, na secura, era irredutível. Os colegas logo perceberam, pois era o único que não dava risadas, mesmo o ambiente sendo muita das vezes, tomado por piadas realmente engraçadas.
O tempo foi passando e o recreio chegando. A barriga de Artur já roncava fazia um bom tempo. Não sabia como faria pra comer. Chegou a pensar que há qualquer momento a porta se abriria e entrariam várias pessoas com aventais e bandejas nas mãos cheias de comida para cada aluno. Neste exato momento o sinal bate de forma ensurdecedora. A professora abre a porta e todos os alunos saem correndo corredor afora. Apenas Artur ficara imóvel e sem saber o que fazer e nem pra onde ir. "Nossa, pra onde todo mundo vai?" - pensava enquanto olhava pra todos os lados com medo. "Ta todo mundo indo embora?" - insistia. "Porque não levam a mochila?". Começa então à sentir o cheiro da comida. "Acho que vou descer também, vou seguir eles".
Pelos corredores, aquele menino de apenas um metro e quinze de altura, se enche de cuidado para não esbarrar em ninguém maior que ele, pois sabe que em qualquer vacilo, poderia apanhar igual via nos filmes americanos que costuma ver nas "sessões da tarde".
Ao chegar até o pátio, depara-se com uma multidão muito maior do que tinha visto na entrada. Assusta-se com a quantidade de pessoas com pacotes de biscoitos na mão, sucos, e maçãs. Todo mundo igual. Olha pros lados, não vê ninguém conhecido. Avista um banco de cimento pra sentar e tentar raciocinar com mais 'clareza'. Fica ali tentando decifrar aquela cena. Mal sabia que aquelas imagens ficariam guardadas para sempre em sua memória.
***
Enquanto isso, em casa, Ângela encontra-se cantando hinos de sua igreja, recitando versos da bíblia, além de estar nervosa e aflita. "Oh meu Deus! Será que meu menino está comendo o lanche que a escola oferece?" - resmunga - "Ah Senhor esqueci, a escola não tem merenda, oh Senhor do céu, guarda meu menino, meu filhinho mais velho" - continua à lamentar - "Oh meu Deus, proteja ele de todo mal, Amém".
Automaticamente, passa a abrir todas as portas dos armários que encontra pela frente, atrás de uma única coisa: COMIDA ! "Senhor Jesus, Rei dos Reis, me dê forças pra aguentar essa prova, me dê forças pra carregar essa cruz, Amém". Foi então que começa então a se pentear, trocou de saia e saiu na rua atrás de uma única coisa: COMIDA !
- Oi Dona Zefa, será que a senhora tem umas bananas pra me dar ? - Ângela fazia cara de coitada propositalmente.
- 'Fia', eu não sei não viu. Vou dar uma olhada aqui. Vem cá minha fia...
E com um gesto nas mãos , Dona Zefinha chama aquela mãe desesperada para dentro de seu barraco.
Dona Zefa era a mais antiga da rua. Mulher de estatura baixa, turbante, bengala feita com galhos de árvores, banguela e o curioso: percorria as ruas da favela sempre com vários cachorros vira-latas atrás de si. Morava num barraco muito pequeno, os estranho era que o barraco localizava-se em um terreno enorme. Ao lado do barraco havia uma palmeira-imperial e muito mato. Os meninos tinham medo daquela mulher, eles a chamavam de "Dona Zefinha dos cachorros loucos" ou simplesmente "Bruxa Zefa". Aquela senhora calma nunca soubera desses apelidos, não parava em casa, ninguém sabia pra onde ela ia, todos os dias saia com a mãos vazias e voltava no fim da tarde cheia de latinhas de refrigerante, dando àquela mulher, um ar misterioso.
- Tome aqui minha fia, aqui tem umas coisas nessa caixa... - explicava a 'velha'.
Os olhos de Ângela brilhavam como estrelas.
- Deus abençoe Dona Zefa, a senh... - aumentava o tom de voz enquanto se afastava com rapidez...
No decorrer do caminho de volta, só pensava em uma coisa: COMIDA! Estava muito feliz, pois havia conseguido o que queria com muita facilidade. No mesmo momento ajoelhou-se, orou e agradeceu à Deus pela benção. " Oh Senhor, criador dos Céus e da Terra, obrigado por esta benção que tem me concedido. Toda honra e toda glória seja dada em seu bendito e magnífico nome. Amém"
As horas passavam à todo vapor na escola. Já escurecia quando a professora se despedia dos alunos. Artur estava exausto, com fome e com tontura, em nenhum momento consegui concentrar-se nas explicações da professora. Tudo rodava. Tudo entrava por um ouvido e saía pelo outro. Nada permanecia por mais de um minuto na mente do menino. Rapidamente guardou o material e esperou a hora de sair e encontrar sua mãe.
O som daquele sinal ensurdecedor soou como canto de pássaros em seus ouvidos. Exatamente como combinara com sua mãe, foi diretamente para o ponto de encontro: voltando pelo mesmo pátio no lado do banheiro feminino, havia uma caixa de luz, vermelha grande e de fácil visibilidade. Mesmo antes de chegar, já tinha avistado sua mãe de longe. De súbito, o semblante daquele menino miúdo muda. Parecia-lhe que estava sendo envolvido por novas energias. Começava a rir involuntariamente.
- Oi mainha, faz tempo que você chegou ?
- Faz muito tempo não...eu...ai, da um abraço aqui na mamãe. Como foi o primeiro dia de aula ?
- Foi bom mainha, a 'fessôra" parece a vovó, hihihihi. - respondeu propositalmente com uma risada, para assim não dar na cara que estava morrendo de fome. Mas como nada passa despercebido aos olhos de uma mãe...
- Toma aqui, olha o que eu trouxe - diz a mãe enquanto balançava um pacotinho de amendoim torrado.
Os olhos de Artur quase saltaram da orbita ocular.
- É tudo pra mim mainha ?
- É sim, come tudo agora e bem rápido, porque se seus irmãos verem vão achar ruim...
- Mainha, tem comida lá em casa ?
Nesse momento o coração da mãe congela e quase paralisa.
- Oh filho, não se preocupa... se não tiver Deus vai preparar tá ? - tentava desviar o foco do filho, mas em vão - Tá chegando dia 5, papai vai receber e comprar comida pra nós, o que você quer de comer ?
- Ah mainha, acho que quero nada não, é melhor reunir todo mundo em casa e fazer uma lista - sugeriu o menino.
- Mas escolhe alguma coisa pra mamãe comprar, pensa bem filho... - sugeriu a mãe.
- Já sei o que eu quero, uma bolacha recheada... mas tem que ser de morango tá ?
A mãe apenas concorda e sorri.
- Ah ! falta mais duas coisas... e queria aquelas uvas bem roxas e pequenas, daquelas bem doces, e também quero um pote de paçoca, acho que só isso, e...
- Eita filho, três coisas ? - interrompeu a mãe.
- Sim mainha, a paçoca e a bolacha eu vi com os meninos da minha sala, eu quis pedir pra experimentar, mas a senhora disse pra eu nunca pedir comida, que é coisa de favelado... que era pra ter orgulho e aguentar até o final... - dizia Artur se orgulhando em obedecer aos ensinamentos de sua mãe. - A uva é porque é roxa, e eu gosto de roxo, e...
- Só por causa disso ? - Ângela estranhava.
- Não mainha, eu amo o gostinho de uva. O gosto é docinho, eu engulo até as sementes. Eu vou estudar e trabalhar muito, muito, muito mesmo... juntar dinheiro e montar uma fábrica de uva...
Ângela ouvia tudo aquilo maravilhada com a noção de futuro de seu filho. Fazia tempo que tentava colocar esse ideal na educação do menino. Seria um sonho sendo realizado se daqui à 20 anos seu filho estivesse com uma família, casa própria e um bom emprego. Estes desejos traziam-lhe a estranha sensação de que o tempo passava rápido demais. Sentia saudades do tempo em que também ia pra escola, ou melhor, tentava. A escola nunca fazia sentido para Ângela, o fato dela ter que ir pra escola com fome, fazia ela pensar, ainda criança, que não desejava isso pra ninguém, ainda mais pro seus filhos. Já no primário Ângela já se imaginava sendo mãe, considerava essa opção como a salvação de sua miserável vida. Por um motivo desconhecido, passava a considerar que aquele seria o propósito de sua vida: ter filhos, cuidar deles, dar-lhes as melhores condições possíveis, educá-los com dedicação, e dar remédios quando estivessem doentes.
Porém, aquela mulher sonhadora percebeu que não tinha conseguido a vida que sonhava: seus filhos passavam fome, frio e humilhações constantes, e para piorar, não tinha esperanças que aquilo melhorasse à curto prazo. Seu marido estava desempregado e sobrevivia de bicos de pedreiro. a depressão estava quase dominando-a, o que a libertava daquelas ideias ruins era a voz de seus filhos, os olhares que eles lançavam à ela, e os sonhos e desejos que eles compartilhavam. Tudo isso trazia um ânimo e sobrevida àquela sofredora mãe.
- Mainha, mainha, porque seu olho tá molhado ? Tá chorando mainha ?
- Oh filhin, to não... peguei uma alergia, esse tempo seco, e...
- Quando a gente chegar em casa, eu faço um remédio pra você tá mainha ? - Sugeriu o inocente filho.
- Tá bom ! Agora vamos andar mais rápido, porque já está ficando escuro...
***
Os dois andavam apressadamente. A mão já cansada e ofegante, caminhava com dificuldades, recuperava as energias somente quando lembrava que, segurando sua mão, estava seu filho mais velho. Já Artur, com suas pernas curtas e frágeis, tentava acompanhar sua mãe, às vezes tendo que acelerar os passos atrás dela.
A curiosidade do menino o atrai aos mínimos detalhes por onde passava. Reparava tudo e todos. Possuía desde cedo um certo instinto questionador de todo menino da periferia. Perguntava, gesticulava, gritava logo após ver algo novo em sua vida, apontava o dedo pra todas as coisas que não sabia o que era. Desde que tinha encontrado sua mãe na saída da escola, decidira que iria observar minuciosamente o caminho de volta pra casa, e assim, quando chegasse anotasse tudo em seu diário.
Ao mesmo tempo, que assustava-se com aquela visão da realidade de onde morava, Artur sentia-se extasiado com o que via: botecos lotados de homens pretos e bêbados, uns jogavam sinuca, outros revezavam-se entre o truco e o dominó. Gritavam palavrões uns com os outros, pareciam felizes por fora e amargurados por dentro, cada um com seu cigarro ou um copo de pinga.
Foi quando virou a esquina que o garoto assustou-se. Sentia sua mãe apertar sua mão com muito mais força. Não entendeu muito o motivo pra isso, olhava pros rosto de sua mãe à procura de respostas. Bastou um olhar discreto dela para o menino entender o recado: havia algo de perigoso mais a frente no caminho pra casa.
De longe Artur ouvia alguns gemidos de dor logo a frente, percebia a mão de sua mãe transpirar intensamente, sentiu medo, tremedeira nas pernas, a vontade de defecar-se todo. Tenta distrair-se sem entender a razão de tudo isso estar ocorrendo.
Observa luzes de cores vermelha e azul piscando, elas são familiares para Artur. Desde sempre ouvia de todos em sua volta os perigos que estas cores representavam pra ele e seus amigos e familiares. Desde logo cedo ouvira histórias macabras em que estas luzes estavam sempre presentes.
A hora de enfrentar o medo chegara, estava disposto a defender sua mãe daquelas luzes, que pra ele simbolizavam morte, injustiça, sofrimento e agonia. Sua consciência quase inocente de pensar, quase o impediu de perceber o que já encontrava-se ao seu lado: cinco carros com as luzes piscando intensamente cercavam três homens, sendo um deles amigos de Artur. As chamadas de rádio e telefonemas não cessavam, à todo momento nomes e números eram ditados de dentro dos carros. Exatamente dois fatos que Artur viu o deixaram extremamente assustado e com medo: primeiramente foi quando ameaçou um choro ao ver um homem vestido quase igual um robô que aparecia nos filmes americanos, esse homem dava tapas na cara de seu amigo. O ápice de seu abalo emocional foi o que viu em seguida: um corpo escuro caído no chão coberto com alguns jornais em suas partes íntimas. Artur conhecia aquele homem, ele era irmão de seu amigo!
Segurou mais forte na mãe de sua mãe, que por sua vez percebeu a alteração do menino e decidiu atravessar a rua e ir em direção ao lado onde existe a famosa Mata do Roque. Artur não falava mais nada, estava paralisado fisicamente e mentalmente. Só andava por que entregava seus movimentos à sua mãe. Nada disso era atoa, era a primeira vez que via uma pessoa morta. Era a primeira vez que via sangue nas ruas e calçadas por onde passava. Era a primeira vez que presenciava as luzes vermelhas e azuis. Nunca pensou que viveria pra ver isso, tudo agora era realidade. Todo aquele baque servia para plantar as piores sementes que um menino daquela idade poderia semear: a do ódio e a vingança. Agora tudo o que seus amigos sempre falavam nas rodas de conversa, nos intervalos entre um jogo de futebol e outro, entre as caminhadas no meio do mato em direção ao capão pra soltarem pipas. Agora tudo fazia mais sentido, aquele mundo colorido e alegre no qual o menino vivia, desmanchava-se em mil pedaços. A todo momento enchia-se de perguntas e mais perguntas: "porque mataram aquele homem ?" - "será que foi um bandido ou um polícia?". Não aguentava o aperto no coração. Aquela pobre criança chorou, chorou e chorou. Sentia-se incapaz de ajudar aquele conhecido; Imaginou que talvez a solução talvez estaria em si mesmo, ainda havia chances de mudar seus planos para o futuro, mas qual seria o plano ideal para mudar que esse tipo de coisa acontecesse novamente?
Ao chegarem casa, cada um vai pra um canto do barraco, Artur joga a mochila no velho sofá e foi direto para o quarto. Ao observar o ocorrido, Ângela logo percebe que o que vira mais cedo na rua, tinha abalado seu filho. Ao mesmo tempo que lamentava-se por seu filho ter quer presenciar aquele tipo de coisa, ficava pensando como seria a explicação para todas a perguntas que estavam prestes à serem feitas pelo menino, pois sabia que a curiosidade ira tomar conta da mente dele. Refletia tudo isso enquanto andava de um lado pro outro pela sala/cozinha. Retomou a consciência. Olhou para os lados, pra cima, pra baixo... só miséria, sujeira e mal cheiro. Não tinha mais forças pra resistir à tanta coisa ruim. Ajoelha-se e imediatamente e inicia suas preces: "Óh meu Deus do Céu ! Por que me fizestes assim? Miserável, sem dinheiro, sem estudos... estou fraca Senhor, não aguento mais. A única coisa que me impede de me matar é o fato de ter que criar meus filhos... não tenho comida pra dar pros meus meninos Senhor. Não tenho dinheiro, a comida já acabou faz tempo e tenho que ficar pedindo esmola na rua. Prepara uma casa pra mim, pois quando chove a casa fica cheia de pingueiras e lama. Óh Pai ! Criador dos Céus e da Terra ! Onipotente e Onipresente ! Me livre dessa prova que o inimigo me colocou... se assim for a sua vontade... prometo rogar e agradecer em seu Santíssimo nome por toda a eternidade. Amém !
Já o menino alimentava o rancor que crescia em sua mente. Sentia-se extremamente incapaz, impotente e fraco. Pensou, pensou.. até que decidiu chamar sua mãe.
- Maiiiiiiiiiiinha !!! Cê ta ocupada ? Tem como vir aqui ?
Ângela corre em direção ao seu filho.
- O que foi Artuzinho ? - HAHAHAHAHAHA... - tentava rir no intuito de transmitir boas energias ao seu filho. Imediatamente percebe que foi em vão.
- Mainha, você viu aquele homem no chão ?
- Vi sim Artur, você viu né? O que você sentiu ?
- Eu senti várias coisas mainha... ódio, raiva, tristeza... a-a-aqui mo-mo-morre muita gente ?
- Oh meu fi... - cof cof cof - Não liga pra essas coisas não, tenta esquecer, Deus vai te proteger...
- Ah mais - tisc tisc tisc - Ele era irmão do meu amigo. E se fosse alguém da família ?
- Deus não vai permitir... clama à Deus, ele vai proteger a gente, e também...
- Nossa, tudo Deus, tudo Deus... porque Deus não ajudou ele ? Deus esqueceu dele ? É bem capaz, até porque a gente eu sei que ele já esqueceu...
PAAAAFFFFF !!!
- Respeita o nome de Deus !!! Duvide de Deus não, que coisa feia moleque imundo !!! Você tá numa família de crente... vai orar e pedir perdão pra Deus...
O menino ajoelha ao mesmo tempo que tenta segurar o choro e assim demonstrar toda sua macheza e virilidade à sua mãe, começa a ensaiar uma oração.
- Vou deixar você, vou apagar a luz pra você ficar ai na comunhão ! Vê se toma juízo !
Artur confere a porta. Toda a energia dentro daquele quarto muda completamente, foi como se estivesse ocorrendo ali uma mistura de diversas decisões tomadas desde o momento em que estava ouvindo sua mãe. Foi então que fechou os olhos subitamente e respirou fundo. Concentrou-se em sua própria respiração. Eis que em sua célula mais íntima, entoa as seguintes palavras em sua consciência:
- Deus, você me paga ! O senhor sabe que está errado ! Amém !
quinta-feira, 24 de dezembro de 2015
FELIZ NATAL
Acordei bem disposto, até porque hoje é véspera de Natal, então aproveito que todo mundo está bonzinho, sorrindo e feliz. Menos eu, não estou bonzinho, nem sorrindo e nem feliz hoje, e nem no resto do ano, muito pelo contrário, estou maldoso, com raiva e triste. Enquanto todo mundo vai viajar, preparar a ceia do maldito Natal eu vou ter que ir pra Praça do Campo Limpo, lá tem vários faróis. O meu ponto é na Avenida de cima, o zóio de gato comanda a Avenida debaixo, antes era do Mortadela, mas os dois brigaram, quem ganhasse ficaria com comando da avenida. O zóio de gato foi covarde, escondia um canivete na cueca.
Pra atrair as pessoas eu tenho que fazer o mesmo discurso:
- Oi senhora, minha família passa necessidade tem como dar uma ajudinha?
- Toma aqui neguinho, se comprar droga eu te mato!!!
Era sempre a mesma coisa. O melhor jeito para atrair a clientela era fazer o que meu tio me ensinou. Era só balançar os cabos de vassouras quebrados no meio, fazer uns malabarismos pra pagar de artista e pronto! Qualquer idiota iria achar que eu era um artista de circo promissor.
Tenho que ir pro “trabalho” a pé! Faz muito sol, sempre que está muito sol eu peço geladinho de manga pro tiozinho do bar, ele é firmeza.
- Tio tem o de manga?
- Tem não meu filho, mas rapaz, veja se tem o de abacate lá nos fundos.
Eu também gosto do de abacate, sendo gelado podia ser até de quiabo, chupo o geladinho rápido, se derreter eu tô fudido, suco de abacate é ruim demais.
Quando eu chego lá, ainda tem poucos carros nas ruas, sento lá na praça e ficou olhando o movimento, hoje tem bastante gente com bicicleta, patins e skate, se eu tivesse bicicleta, eu não iria ficar me exibindo que nem besta, eu iria montar uma mini empresa, iria emprestar a bicicleta pra todo mundo, mas cobrando 5 reais pra cada hora, iria fazer vários cartazes "aluga-se bicicleta", ia ficar rico rapidinho, iria comprar uma casa no lugar mais alto da favela, levar minha família pra lá, ia dar 50 reais pra minha mãe todo mês pra ela fazer compra, iria dar 10 pro meu irmãozinho, o resto ia ficar comigo, eu compraria vários pipas e ia passar o dia todo soltando pipa.
- Manda a busca ae filho da puta!!!
-Ae viado tô sem cerol...
- Vou cortar na mão caralho, vou cortar na mão!!!
- Ae se cortar na mão, vou te arrebentar...
- Pode vim filho da puta!!!
A avenida tá ficando cheia vou subir pra lá. Tô com fome, o primeiro dinheiro que eu pegar vou comprar uma coxinha e um suco de limão. Suco de limão é bom, minha prima gosta...
Eu sei fazer muitas coisas no farol, tudo pras pessoas me acharem um artista, eu planto bananeira, canto música do Tim Maia (minha voz ficou igualzinha a dele), eu faço malabarismo com os pedaços de pau, jogo bilhetinho pela janela... mas o que dá muito dinheiro é fazer malabarismo com bolinhas de tênis. Ontem eu estava jogando uma bolinha pro alto e escutei umas gargalhadas de criança, fui seguindo o som, está vindo de um carro muito chique, fui fazer perto dela, ela dava muita risada e isso me deixava satisfeito, acho que isso era melhor do que receber umas moedinhas. Fiquei alguns segundos, não podia errar, se eu errasse a criança iria parar de rir, mas do nada o motorista apertou um botão lá dentro do carro e o vidro começou a subir, até que eu estava acostumado a ter vidro fechado na minha cara quando eu chegava muito perto. Mas a criança estava rindo e eu não estava armado.
O sinal abriu, tenho que sair da rua senão os motoqueiros ficam me xingando denovo. Ano passado um me chutou bem na barriga. Vomitei sangue. Fui pra casa e minha mãe cuidou de mim, me deu um chá muito amargo, e no outro dia eu estava curado.
Tô cansado, ta muito sol, vou sentar na praça outra vez. Não quero mais trabalhar assim, eu vi na TV, que nesse país existe crianças que brincam em piscina e escorregador, também vi na TV que existe um lugar chamado Disney, minha mãe disse que o lugar não existe na terra, só no céu, que quando eu morrer vou ficar brincando lá pra sempre. Eu acredito nela.
Eu tô pensando em sair porque ontem eu pensei que ia morrer. Ontem eu estava trabalhando como qualquer dia normal, eu não tinha comido nada, estava com muita tontura, sentei na calçada.
Quando o farol fechou, uma moça buzinou e me chamou:
- Ei menino, está triste?
- Não moça, é que eu tô com fome, tô mole...
- Quer água? Oh, tá geladinha....
- Me dá aqui, tô com sede também, pô, valeu mesmo eim tia...
- Como é seu nome? Quer almoçar?
- Meu nome é Carlinhos, foi minha mãe que escolheu....
- E cadê ela?
- Tá catando papelão lá perto de casa...
- Você mora longe?
- Moro!
- Tô indo almoçar, quer ir comigo?
- Minha mãe me ensinou a não sair com estranhos.
- Mas eu não sou uma estranha, sou sua amiga, sei até seu nome...
Decidi ir, o carro era enorme, tinha cheiro de perfume, tentei gravar o caminho pra poder voltar sozinho. Passamos por uns prédios bem grandes, a moça entrou numa rua bem estreita, ai eu desconfiei...
- Tia tá chegando? Tô com muita fome...
- Sim, estamos quase lá, aguenta mais um pouco....
Naquela hora eu queria sair do carro, estava com medo, mas primeiro eu ia comer, pra depois fugir. Quando chegamos, ela fechou todos os vidros do carro, entrou na garagem de um prédio, a casa dela era lá em cima, bem em cima...
Subimos pelo elevador e entramos numa casa muito chique, ela mandou eu sentar, eu pedi um copo d'água, ela me deu, estava bem gelado, Mas com um gosto meio salgado, foi ai que eu percebi que tinha um pozinho branco no fundo do copo, comecei a me sentir mal, mas eu fui forte e resisti.
Sempre antes de sair de casa minha mãe me dava vários conselhos, eu sempre ouvia, mas hoje eu desobedeci ela.
- Menino tá levando a chave de fenda que eu te dei?
- Tô mãe...
- Não esquece! Se algum estranho mexer com você, tu se defende, não deixa ninguém te fazer mal, não entra em carro de estranhos...
Coração de mãe nunca erra! Comecei a chorar, estava com saudade dela, queria sair daquele lugar. Mexi na meia e lembrei que a chave de fenda ainda estava escondida, limpei as lágrimas e decidi, rezei o pai nosso bem rapidinho...
Me levantei bem devagar, sem fazer barulho, fui no banheiro ninguém estava, fui na cozinha e lá estava ela, falando ao telefone, fui andando bem devagarinho, coloquei a chave de fenda na mão direita, bem na hora que ela ia se virar pra frente, não perdi tempo, meti a chave de fenda bem no olho dela, ela ainda tentou gritar, mas eu enforquei ela, derrubei ela no chão, peguei uma faca na pia e dei várias facadas no pescoço dela, igual eu vi no filme que assisti na escola, dei vários chutes nela, minhas mãos ficaram cheias de sangue, lavei elas na pia. Abri a geladeira, tinha vários doces lá, umas pingas, umas frutas. Coloquei tudo de gostoso dentro de uma sacola, fui pra sala e vi um relógio e também levei pra dar pra minha mãe, saí de lá com a barriga e a sacola cheia.
Eu não sabia onde estava, mas vi que as pessoas andavam bem depressa, os homens vestiam terno e as mulheres vestidos. Como minha mãe me ensinou a me virar sozinho, fui olhando as placas: Avenida Paraíso, Avenida Paulista, Rua da Consolação, em instantes eu já sabia onde estava, era só pegar um busão branco e vinho que ia direto pro Terminal Campo Limpo.
- Cobrador posso passar por baixo da catraca?
- O que você tem ai na sacola?
- umas frutas, uns doces, bolos...
- Me da umas frutas ai moleque!
- Toma!
- Pode passar, mas não acostuma...
Essa história eu não contei pra minha mãe, foi engraçado quando ela viu a sacola cheia de comida, ficou bem feliz, ela chamou todos os meninos da rua pra comer em casa. Me senti um herói.
Acho que vai chover, tô sentado aqui já faz tempo, não posso chegar em casa à noite, na rua de casa não tem luz, e minha mãe fica preocupada. Vou andando ate minha casa, por isso eu tô magrelo, eu ando, ando e como pouca comida.
Hoje ganhei 29 reais no “trabalho”, da pra comprar arroz, feijão, e alguma mistura, vou comprar carne seca, hoje eu tô chique.
O que adianta chegar em casa é não ter nada pra fazer? Tá chovendo muito, e lá fora tá ficando alagado, daqui a pouco a água entra aqui dentro. Vou deitar agora.
UFFFFAAAA!!! Como é bom descansar, minha mãe está deitada vendo novela, meu irmão tá dormindo na outra cama, vou dormir, amanhã tenho que acordar cedo novamente.
segunda-feira, 7 de dezembro de 2015
FOGO
Dedicado ao meu tio.
Cinco e meia da manhã. Ricardo acorda pronto para mais um dia, era assim durante os últimos 30 anos, desde os 16 fazia o mesmo ritual: acordava, levantava, tomava banho, vestia o mesmo uniforme sujo de graxa, escovava os dentes, passava desodorante, ajoelhava e orava. Saía todo dia com fome e com ódio, trabalhava tanto tempo na mesma empresa e mesmo assim não tinha dinheiro nem para comprar um carro popular, pelo menos o dinheiro dava para fazer o puxadinho na laje de casa, só nos últimos quatro anos construiu dois quartos e um banheiro no andar de cima da casa, e agora estava pintando a parte de fora, depois disso deixaria de dormir com a mãe e o irmão no mesmo cômodo. Eram esses pequenos progressos que deixava Ricardo disposto para subir a ladeira e ir para a fábrica.
Seu patrão era um japonês, o Sr. Tadashi, homem observador, de intuição certeira, sabia escolher sem errar, os melhores peões da quebrada, fortes, dedicados e dispostos a suar sangue em troca de oito notas azuis. A tarefa de Ricardo na fábrica era manobrar as ferramentas com destreza, segurança e rapidez, os anos ininterruptos serviram para tal graça, sua função era consertar as máquinas que apresentavam defeitos, dessas máquinas surgiam inúmeras ferramentas usadas no dia a dia: como porcas, parafusos, pregos... só não saía a felicidade e paz para Ricardo.
Aquela sexta-feira 13 estava estranha - Tição- como era chamado desde pequeno, já sentira o ar pesado na fábrica, todos pareciam esperar algo de ruim, como se não tivessem tomado café da manhã, aliás, o patrão tinha suspendido as refeições bancadas pela empresa, alegando cortes nas despesas “desnecessárias”.
Chegou a hora do almoço, momento comemorado por Ricardo, que além de matar a fome, gozava do privilégio de sua mãe sempre deixar a refeição pronta exatamente às 11:45, Ricardo chegava ao meio dia em casa. Ao passar no almoxarifado para marcar sua hora de saída para almoço, sente alguém cutucar seu ombro, olha para trás, da um passo pro lado e arregala os olhos, era o seu patrão que o chamava, o seu “dono”, o homem que lhe devia a dignidade de ter um trabalho, o homem que cometia desprazer de depositar 8 notas de cem em sua conta bancária, - o Kamikaze, apelido dado secretamente pelos funcionários que alimentavam grande irá pelo patrão -, fez um sinal com o dedo para Ricardo o acompanhar até sua sala.
Tadashi à esta altura, estava com muita pressa, pois naquela tarde iria viajar ao Paraguai, iria assinar uma concessão com o governo, para assim, abrir uma nova fábrica naquele país, aproveitando sua mão de obra barata e semi analfabeta.
O empresário foi curto e objetivo com Ricardo.
- É o seguinte, te chamei aqui pra lhe dizer que a empresa está passando por dificuldades financeiras, esta crise está me dando prejuízo, e...
- Mas Tadashi ! – exclamou Ricardo tentando interromper o patrão.
- Primeiramente, é Senhor Tadashi pra você - advertiu o patrão já zangado e impaciente.
- Em quem você votou ? Na Dilma não foi? Graças à ela estou quase fechando as portas da fábrica, esses comunistas malditos estão afundando o Brasil, mas você é grato à ela né, claro, sua mãe recebe o bolsa família.
Ricardo já se encontrava contrariado , não suportava que terceiros falassem de sua mãe, tomou coragem e disse de forma desafiante:
- Já procurou ver se no Japão está melhor ?
Aquela ousadia irritou o patrão que no mesmo momento esbravejou.
- Estou tendo que mandar gente embora, você é um deles, vá almoçar e nem precisa voltar, amanhã cedo você pega o dinheiro do mês. Não precisa se despedir, aliás vou mandar mais gente embora, vocês se veem depois na rua.
Ricardo estava em choque.
- Eu estou devendo três prestações das Casas Bahia, tenho que comprar a laje de dois quartos, tenho que...
De modo metódico e seco Tadashi responde:
- Olha aqui seu preto burro, isso não é problema meu, e vá almoçar, não precisa voltar, é a última vez que falo.
Ricardo ouviu e digeriu aquelas palavras em seco, sentiu raiva e rancor, passou a mão em seu rosto magro, olhou para a mesa e viu uma tesoura, sentiu vontade de enfiar a ponta daquele objeto na garganta daquele homem, talvez sentiria prazer em ver aquela pele branca se tornar vermelha e depois amarela, talvez sentiria prazer em ver o sangue em cima da mesa, poderia também enfiar a ponta da tesoura no olho direito daquele japonês racista, tiraria o olho para fora e jogaria no meio do pátio da fábrica, seria um herói, todos iriam cumprimentá-lo.
Ricardo pensava tudo isso enquanto o patrão assinava a sua carta de demissão.
- Toma aqui neguinho, se quiser guardar de recordação... fique à vontade.
Ricardo o agradeceu e de forma seca responde.
- Pode deixar. Boa tarde.
Já era meio dia e cinco, Dona Tereza, mãe de Ricardo, aguardava deitada o filho que pela primeira vez atrasava para o almoço.
No caminho de volta para casa, Ricardo estava pensativo, andava devagar, tinha o ódio em seu coração. Trinta anos de humilhação pra nada, não tinha forças nem para chorar, a forma que foi tratado pelo patrão, agora ex, foi humilhante, sabia que não merecia aquilo, ser chamado de preto burro foi o cúmulo. Seu coração queimava, sentia o efeito do ódio, naquele momento era tudo que restava, a cada passo, a cada respirada, era mais ódio, já não sentia fome e nem cansaço. Desceu a Rua olhando pra cima, começou a gingar como se nada tivesse acontecido, àquela altura já tinha decidido tudo.
Chegou em casa e foi direto abraçar sua mãe, colocou comida no prato, naquele dia tinha arroz, feijão e linguiça frita com cebola, era seu prato preferido. Em seguida deitou e dormiu profundamente, o sono profundo fez com que Ricardo sonhasse com sua infância sofrida e ao mesmo tempo esperançosa, sonhou que entregava a chave de uma casa novinha para sua mãe, era sua grande promessa de infância, desde pequeno quando via sua mãe chorar pelos cantos da casa mofada e cheia de goteira, ia logo dizendo:
- Chora não mainha, eu vou trabalhar e comprar uma casa para você tá bom? Não vai ter nenhuma pingueira, eu vou fazer ela no lugar onde faz muito sol, e eu....
Dona Tereza ao ouvir aquelas palavras pedia à Deus para cuidar de seu filho, e que não deixasse ele desviar do caminho, o abraçava enquanto soluçava
Ricardo mantinha tudo aquilo vivo na memória.
Ricardo acorda.
Ao ir ao quarto da mãe observa que ela ainda está dormindo. Em seguida vai para o banheiro, para em frente o espelho e se depara com um rosto negro e magro. Ricardo tentou sorrir, se achou feio sorrindo, tentou novamente sorrir, teve certeza de que a felicidade não combinava com sua fisionomia. Tirou a camiseta, o pescoço fino e seco não o estranhava, o que mais lhe preocupava era seu tórax de aspecto raquítico, sem vida, as marcas das suas costelas nitidamente às mostras, pensou estar doente, uma doença grave, preferiu não acreditar, escolheu acreditar que era por causa da fome que desde criança o assolava. Sabia que aquela cena horrenda o afastava das mulheres, Ricardo sabia muito bem que não se encaixava no padrão, sabia que não era igual o galã da novela, não era branco, não tinha cabelo grisalho, não tinha a pele brilhando, a barba por fazer, os olhos azuis... ao invés disso a realidade era outra, estava ficando careca, com os pelos da barba encravando no rosto, dentes podres, olhos amarelados, sua autoestima ia ladeira abaixo à cada propaganda nova, sempre com os mesmos modelos midiáticos.
Aquela sessão de masoquismo no banheiro de sua casa já era o suficiente para Ricardo perder a noção do tempo, ao todo, ficara lá por quase uma hora se desgraçando por ser aquela pessoa sem nada, decidiu se vestir e sair para rua, decidiu ir logo procurando seus amigos de fábrica, aliás, todos ali na rua trabalhavam por lá. Alguns consertavam máquinas, outros limpavam elas, tinha os que carregavam elas, mas nenhum era dono delas.
Encontrou Zeca e Serginho cheirando cocaína na porta do bar, os cumprimentou perguntando se tinham ido trabalhar hoje, ambos responderam que sim, porem Zeca respondeu que foi demitido por justa causa, e que o patrão deu o motivo de que supostamente Zeca teria roubado um martelo da fábrica. Já Serginho respondeu que foi demitido depois que o patrão alegou que a fábrica estava saindo no prejuízo, por culpa da crise.
Ao ouvir isso Ricardo sentiu-se satisfeito, por um lado queria ouvir aquilo, aliás precisava de mais pessoas para fazer o que planejava ao sair da fábrica no puro ódio. Os três amigos dialogam até o anoitecer. Despediu-se de seus parceiros. Voltou para casa e ao chegar no portão sentiu o cheiro da comida de sua mãe, Ricardo tinha dado sorte, Dona Teresa já havia colocado as panelas na mesa, o ex-operário comia tudo o que via pela frente, tinha mandioca frita, linguiça com cebola, arroz, feijão com bacon e salada, tinha ainda algo raro em suas refeições: suco natural de fruta. Sua mãe tinha escolhido abacaxi. Suco gelado depois de um dia estressante era um sonho de muito malandro.
Sentou-se a mesa, sua mãe puxou assunto mesmo que receosa.
- Filho, viu seu irmão?
Mesmo com comida na boca Ricardo responde.
- Não sei mainha, ele não estava dormindo?
- Sim, mas acordou, saiu faz 40 minutos, você não viu ele na rua?
- Vixe mainha vai ver ele foi na quadra do Mimás jogar um fut.
- Mas porque essa hora da noite fiu ?
- É por que essas horas os moleques chegam do trampo, e...
Sua mãe interrompe.
- Quer mais suco ?
Mesmo engasgando Ricardo responde:
- Sim mainha, coloca mais ai.
Dona Tereza muda de assunto.
- Ricardo você mexeu nas nossas fotos antigas hoje, estavam escondida lá no quintal como você achou?
- Vixe mainha a senhora não sabe mais esconder as coisas de mim...
Os dois riram ao mesmo tempo.
No fundo sentiam falta do passado, Ricardo sentia falta de quando sua mãe ia busca-lo na escola todo dia, na chuva ou no sol, depois levava ele na doceria e deixava ele escolher dois reais de doces, Ricardo escolhia sempre um único doce, a paçoca. Já sua mãe sentia falta de lavar aquelas roupinhas pequenas de criança, Ricardo vestia de tudo: macacão, shorts, calça, regata... tudo isso fazia com que Teresa gastasse horas do dia naquela tarefa, depois agradecia à Deus por ter dado o filho que tanto pedira, um homem que pudesse cuidar dela na velhice que protegesse ela de qualquer injustiça.
Ricardo ainda não sabia como iria contar para sua mãe que foi demitido, e ainda por cima humilhado, olhava para ela e se deparava com aquele rosto cansando e sofrido, preferiu poupá-la, levantou-se da mesa, deu um abraço nela, à agradeceu por tudo e saiu.
Foi direto para laje, ali era seu Santuário, sua sala de reuniões, onde apenas UM poderia ser convidado, Deus. Naquele local havia ocorrido inúmeros conversas, apenas os dois. Mas Ricardo não subiu ali para conversa, naquela noite Ricardo apenas pediu a bênção divina para ter êxito no seu plano do dia seguinte, em seguida foi pra sua cama. Tirou sua camiseta e deitou naquele colchão fino que o deixava todo dia com dores nas costas, ao acordar, porem não reclamava, sabia que tinha pessoas em piores condições. Não demorou muito para sentir sono, adormeceu.
Relógio desperta exatamente às cinco horas da manhã, desliga o relógio, levanta, tira as remelas dos olhos, vai direto ao banheiro, levanta a tampa da privada ainda tonto de sono, tenta mirar seu membro na direção certa, mas acaba errando o alvo e assim molhando todo ao redor do vaso, aperta a descarga, vê uma toalha verde escura pendurada, passa no vaso e o seca, pendura novamente a toalha, lava o rosto, isso faz com que Ricardo despertasse mais rápido, pega sua escova e o tubo de pasta, começa a escovar os dentes, sente um gosto horrível de sabão, esbravejou ao saber que na verdade aquilo era o creme de barbear, desiste de escovar o dentes. Passa o desodorante, veste a camisa, olha pela janela vê que já está clareando, calça seu chinelo, faz o sinal-da-cruz pega sua mochila e sai fora.
Ali debaixo daquele pé de abacate foi escolhido à dedo pelos amigos Zeca e Serginho, que fumam um belo baseado enquanto esperavam Ricardo.
Quando faltava apenas uma pontinha para o baseado acabar, surge Ricardo, ali do meio do mato alto, olhar farejador, dominante e raivoso. Ricardo de longe sente o cheiro da erva no ar, chega até seus parceiros e já esbravejando pergunta:
- Não sobrou nem metade do baseado?
- Tu demorou demais... - respondeu Serginho - eu pensei que você tinha um verde do bom em casa filhão.
- Esqueceu que eu perdi o trampo?! – responde Ricardo tentando aconselhar o amigo – a gente só compra quando tem dinheiro sobrando. Mas aí negão, vamos abater?
- HAHAHA !!! É agora, é o Dia D.
Começaram a andar devagar, gingando. Serginho anda na frente, ouvindo GOG pelos fones de ouvido, regata do Facção Central, miçanga marrom, short do exército e chinelos. Zeca vinha com seus dreads escuros, tatuagem até os pescoço, rosto cheio de feridas e cicatrizes, relógio dourado, regata vermelha, olhar sedento por violência, shorts do Santos e tênis Adidas. Renato vinha pelo meio da rua, gingava, olhava para tudo que estava acima dele. Estava à procura de câmeras, na avenida do Paulo Chagas enfim avista uma, parou em frente ela, mostrou o dedo e saiu.
Os três amigos viraram pela esquina da delegacia e desceram a ladeira, entraram na direita e descem o escadão, atravessaram a rua e descem o outro escadão, descem a Rua da Macumba, viram à esquerda, descem outra ladeira, passam pela praça e chegam na fábrica Tadashi LTDA.
Tocam a campainha, a moça do almoxarifado os recebe sem desconfiança, eles agradecem por ela não saber que eles foram demitidos. Pelos corredores Renato faz um simples olhar mensageiro para Serginho, que automaticamente entra no primeiro portão à esquerda, o portão do pátio da fábrica. Zeca mexe na mochila enquanto acompanha Ricardo, que por sua vez se direciona até o escritório da fábrica tira um isqueiro do bolso, e acende um cigarro.
No meio do pátio Serginho ecoava gritos de incentivo aos ex-companheiros, citava Zumbi, Malcom X e até Jussara Machado. Com a ajuda de um megafone, informava à seus antigos companheiros proletários que a fábrica estava sendo ocupada e que Ricardo e Zeca já estavam no escritório tratando pessoalmente com o patrão.
Amarrado e com os olhos arregalados, Tadashi assiste espantado Ricardo mexendo em seu notebook, que após encontrar as pastas com fotos particulares da sua família de férias em Orlando, decide quebrar o silêncio naquele escritório fazendo uma pergunta à seu ex patrão.
- Que tal trocarmos de lugar?... – ironizou - Eu vou para Orlando e você passa a dormir numa casa com pingueira ?!
O patrão com muito ódio responde.
O lugar da sua raça é na favela, no esgoto, seu arrombado, fedido, o lugar de vocês é na cadeia, no cemitério...
Zeca ouve aquilo decepcionado e balançando a cabeça negativamente, pois realmente tinha esperanças de que o empresário fosse pedir desculpas pelos insultos praticados no dia anterior, e assim livrar das cinzas o patrimônio daquele homem. Mas Ricardo é bem mais radical, ao ouvir aquilo, o sangue lhe sobe, a cabeça fervilha, cospe na cara do ex-patrão em seguida lhe da uma coronhada na nuca. Logo após chama Zeca para ir ao pátio.
Vai até o encontro de Serginho e pergunta se está tudo pronto, Serginho acena positivamente com a cabeça
Ricardo sobe em uma máquina e começa a falar enquanto Zeca e Serginho encontram-se à sua esquerda.
- Camaradas, imagino eu que Serginho tenha contado o motivo desta ocupação. Quero lhes dizer, que isto é um gesto de revolta, de ódio, repúdio, retaliação contra um ato de racismo, preconceito e descaso com o nosso povo. Conto com o humilde apoio de vocês, aliás, deixarei à critério de todos apoiar ou não o que estamos pretendendo. Ao ser demitido, ouvi palavras de baixo calão contra minha pessoa, imagino eu que se a maioria de vocês estivessem em meu lugar, também sentiriam o peso do ódio, do rancor de ter alguém te humilhando a nenhum custo. Os tempos de cativeiros acabaram, porém métodos se perpetuam, e ainda continuam à assolar a mente de humanos pobres de conhecimento. O que proponho aqui é apenas um grito para nossa liberdade.
v Ricardo levanta o punho esquerdo e faz a seguinte pergunta à seus colegas.
- Tenho o apoio de vocês ?
As dezenas de peões gritam em conjunto:
- SIM !!!
Em seguida Zeca grita:
- O que vocês querem ?
A multidão responde:
- FOGO !!!
Depois foi a vez de Serginho:
- O que queremos?
A multidão aumenta mais o tom e a intensidade:
- FOGO ! FOGO! FOGO !
Ricardo faz um gesto com a mão, e ordena que Zeca traga o patrão amarrado para o pátio da fábrica.
O líder olha aquela multidão à sua frente, sonhava com aquele momento a noite toda, nunca duvidou do seu potencial de líder. Sabia que ali em suas palavras vários irmãos se espelhavam.
Ali ao seu lado, Serginho sonhava em ter poder em mãos, preferia acreditar que se quisesse mudar para melhor a vida de seu povo deveria ele, tomar de assalto todo o sistema, deveria ele mesmo ditar as regras do jogo e ali naquela fábrica acabaria de dar o primeiro passo. Andando pelo corredor em direção ao escritório, Zeca sonhava com um dia de paz em seu bairro, desejava viver em um terreno só seu, no meio do mato, seringueira com balanço, uma horta, e uma mulher para amar a noite inteira.
Volta até o pátio arrastando o japonês pelos cabelos e a base de socos e pontapés, Zeca desconta ali toda sua raiva.
Ricardo faz questão dele mesmo derramar o álcool que trouxera na mochila. Tadashi observar aquilo fixando os olhos em Ricardo, ali mesmo se conforma e lembra do ditado: um dia da caça outro do caçador.
Vê aquelas chamas consumirem todo seu esforço, décadas de trabalho se transformam aos poucos em apenas cinzas, as notas de dinheiro no chão, o autorretrato da família... Aquilo tudo fazia com que Tadashi Ikeda dos Santos Alves, pedisse perdão à Deus, perdão por ser preconceituoso e intolerante.
As chamas começavam a consumir seu corpo branco, sentia seus pulmões ferverem por dentro, seus olhos pareciam querer saltar do rosto, a roupa e sua pele já eram apenas uma, a língua começa a enrolar. Solta seus últimos gritos de dor, ele para, parece morrer em silêncio. A ultima imagem que vê, mesmo que embaçada e de um olho só, é de uma multidão saindo pelo portão. Ricardo, o último a sair, faz seu ultimo gesto: tira do bolso sua carta de demissão, amassa e joga em direção àquele corpo carbonizado.