quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

FELIZ NATAL

Acordei bem disposto,  até porque hoje é véspera de Natal, então aproveito que todo mundo está bonzinho, sorrindo e feliz. Menos eu, não estou bonzinho,  nem sorrindo e nem feliz hoje, e nem no resto do ano, muito pelo contrário, estou maldoso, com raiva e triste.  Enquanto todo mundo vai viajar, preparar a ceia do maldito Natal eu vou ter que ir pra Praça do Campo Limpo, lá tem vários faróis. O meu ponto é na Avenida de cima,  o zóio de gato comanda a Avenida debaixo,  antes era do Mortadela,  mas os dois brigaram, quem ganhasse ficaria com comando da avenida. O zóio de gato foi covarde,  escondia um canivete na cueca.

Pra atrair as pessoas eu tenho que fazer o mesmo discurso:
- Oi senhora, minha família passa necessidade tem como dar uma ajudinha?
- Toma aqui neguinho, se comprar droga eu te mato!!!

Era sempre a mesma coisa. O melhor jeito para atrair a clientela era fazer o que meu tio me ensinou. Era só  balançar os cabos de vassouras quebrados no meio, fazer uns malabarismos pra pagar de artista e pronto! Qualquer idiota iria achar que eu era um artista de circo promissor.

Tenho que ir pro “trabalho” a pé!  Faz muito sol, sempre que está muito sol eu peço geladinho de manga pro tiozinho do bar, ele é firmeza.
- Tio tem o de manga?
- Tem não  meu filho,  mas rapaz,  veja se tem o de abacate lá nos fundos.
Eu também gosto do de abacate,  sendo gelado podia ser até de quiabo,  chupo o geladinho rápido, se derreter eu tô fudido, suco de abacate é ruim demais.

Quando eu chego lá,  ainda tem poucos carros nas ruas,  sento lá na praça e ficou olhando o movimento, hoje tem bastante gente com bicicleta, patins e skate, se eu tivesse bicicleta, eu não iria ficar me exibindo que nem besta, eu iria montar uma mini empresa,  iria emprestar a bicicleta pra todo mundo, mas cobrando 5 reais pra cada hora, iria fazer vários cartazes "aluga-se bicicleta", ia ficar rico rapidinho,  iria comprar uma casa no lugar mais alto da favela, levar minha família pra lá,  ia dar 50 reais pra minha mãe todo mês pra ela fazer compra, iria dar 10 pro meu irmãozinho,  o resto ia ficar comigo,  eu compraria vários pipas e ia passar o dia todo soltando pipa.
-  Manda a busca ae filho da puta!!!
-Ae viado tô sem cerol...
- Vou cortar na mão caralho,  vou cortar na mão!!!
- Ae se cortar na mão,  vou te arrebentar...
- Pode vim filho da puta!!!

A avenida tá ficando cheia vou subir pra lá. Tô com fome, o primeiro dinheiro que eu pegar vou comprar uma coxinha e um suco de limão. Suco de limão é bom,  minha prima gosta...
Eu sei fazer muitas coisas no farol,  tudo pras pessoas me acharem  um artista,  eu planto bananeira,  canto música do Tim Maia (minha voz ficou igualzinha a dele), eu faço malabarismo com os pedaços de pau,  jogo bilhetinho pela janela... mas o que dá muito dinheiro é fazer malabarismo com bolinhas de tênis. Ontem eu estava jogando uma bolinha pro alto e escutei umas gargalhadas de criança, fui seguindo o som, está vindo de um carro muito chique,  fui fazer perto dela, ela dava muita risada e isso me deixava satisfeito,  acho que isso era melhor do que receber umas moedinhas.  Fiquei alguns segundos,  não podia errar,  se eu errasse a criança iria parar de rir,  mas do nada o motorista apertou um botão lá dentro do carro e o vidro começou a subir,  até que eu estava acostumado a ter vidro fechado na minha cara quando eu chegava muito perto. Mas a criança estava rindo e eu não estava armado.

O sinal abriu,  tenho que sair da rua senão os motoqueiros ficam me xingando denovo. Ano passado um me chutou bem na barriga. Vomitei sangue. Fui pra casa e minha mãe cuidou de mim,  me deu um chá muito amargo,  e no outro dia eu estava curado.
Tô cansado,  ta muito sol,  vou sentar na praça outra vez. Não quero mais trabalhar assim,  eu vi na TV,  que nesse país existe crianças que brincam em piscina e escorregador,  também vi na TV que existe um lugar chamado Disney,  minha mãe disse que o lugar não existe na terra,  só no céu,  que quando eu morrer vou ficar brincando lá pra sempre. Eu acredito nela.
Eu tô pensando em sair porque ontem eu pensei que ia morrer.  Ontem eu estava trabalhando como qualquer dia normal,  eu não tinha comido nada,  estava com muita tontura,  sentei na calçada.
Quando o farol fechou,  uma moça buzinou e me chamou:
- Ei menino,  está triste?
- Não moça,  é que eu tô com fome,  tô mole...
- Quer água?  Oh,  tá geladinha....
- Me dá aqui,  tô com sede também,  pô,  valeu mesmo eim tia...
- Como é seu nome? Quer almoçar?
- Meu nome é Carlinhos, foi minha mãe que escolheu....
- E cadê ela?
- Tá catando papelão lá perto de casa...
- Você mora longe?
- Moro!
- Tô indo almoçar,  quer ir comigo?
- Minha mãe me ensinou a não sair com estranhos.
- Mas eu não sou uma estranha,  sou sua amiga,  sei até seu nome...
Decidi ir,  o carro era enorme,  tinha cheiro de perfume,  tentei gravar o caminho pra poder voltar sozinho.  Passamos por uns prédios bem grandes,  a moça entrou numa rua bem estreita, ai eu desconfiei...
- Tia tá chegando?  Tô com muita fome...
- Sim,  estamos quase lá,  aguenta mais um pouco....
Naquela hora eu queria sair do carro,  estava com medo,  mas primeiro eu ia comer,  pra depois fugir.  Quando chegamos,  ela fechou todos os vidros do carro,  entrou na garagem de um prédio,  a casa dela era lá em cima,  bem em cima...
Subimos pelo elevador e entramos numa casa muito chique,  ela mandou eu sentar,  eu pedi um copo d'água,  ela me deu,  estava bem gelado,  Mas com um gosto meio salgado,  foi ai que eu percebi que tinha um pozinho branco no fundo do copo,  comecei a me sentir mal,  mas eu fui forte e resisti.
 Sempre antes de sair de casa minha mãe me dava vários conselhos,  eu sempre ouvia,  mas hoje eu desobedeci ela.
- Menino tá levando a chave de fenda que eu te dei?
-  Tô mãe...
- Não esquece!  Se algum estranho mexer com você,  tu se defende,  não deixa ninguém te fazer mal,  não entra em carro de estranhos...
Coração de mãe nunca erra! Comecei a chorar,  estava com saudade dela,  queria sair daquele lugar. Mexi na meia e lembrei que a chave de fenda ainda estava escondida,  limpei as lágrimas e decidi,  rezei o pai nosso bem rapidinho...
Me levantei bem devagar,  sem fazer barulho, fui no banheiro ninguém estava,  fui na cozinha e lá estava ela,  falando ao telefone,  fui andando bem devagarinho,  coloquei a chave de fenda  na mão direita,  bem na hora que ela ia se virar pra frente,  não perdi tempo,  meti a chave de fenda bem no olho dela,  ela ainda tentou gritar,  mas eu enforquei ela,  derrubei ela no chão,  peguei uma faca na pia e dei várias facadas no pescoço dela,  igual eu vi no filme que assisti na escola,  dei vários chutes nela, minhas mãos ficaram cheias de sangue, lavei elas na pia. Abri a geladeira,  tinha vários doces lá,  umas pingas,  umas frutas.  Coloquei tudo de gostoso dentro de uma sacola,  fui pra sala e vi um relógio e também levei pra dar pra minha mãe,  saí de lá com a barriga e a sacola cheia.
Eu não  sabia onde estava,  mas vi que as pessoas andavam bem depressa,  os homens vestiam terno e as mulheres vestidos.  Como minha mãe me ensinou a me virar sozinho,  fui olhando as placas: Avenida Paraíso,  Avenida Paulista,  Rua da Consolação,  em instantes eu já sabia onde estava,  era só pegar um busão branco e vinho que ia direto pro Terminal Campo Limpo.
- Cobrador posso passar por baixo da catraca?
- O que você tem ai na sacola?
- umas frutas, uns doces, bolos...
- Me da umas frutas ai moleque!
- Toma!
- Pode passar,  mas não acostuma...
Essa história eu não contei pra minha mãe, foi engraçado quando ela viu a sacola cheia de comida, ficou bem feliz, ela chamou todos os meninos da rua pra comer em casa.  Me senti um herói.

Acho que vai chover, tô sentado aqui já faz tempo,  não posso chegar em casa à noite, na rua de casa não tem luz,  e minha mãe fica preocupada. Vou andando ate minha casa, por isso eu tô magrelo,  eu ando, ando e como pouca comida.
Hoje ganhei 29 reais no “trabalho”, da pra comprar arroz, feijão, e alguma mistura, vou comprar carne seca, hoje eu tô chique.
O que adianta chegar em casa é não ter nada pra fazer? Tá chovendo muito, e lá fora tá  ficando alagado, daqui a pouco a água entra aqui dentro. Vou deitar agora.
UFFFFAAAA!!! Como é bom descansar, minha mãe está deitada vendo novela, meu irmão tá dormindo na outra cama, vou dormir, amanhã tenho que acordar cedo novamente.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

FOGO

 
                                                     Dedicado ao meu tio.

     Cinco e meia da manhã. Ricardo acorda pronto para mais um dia, era assim durante os últimos 30 anos, desde os 16 fazia o mesmo ritual: acordava, levantava, tomava banho, vestia o mesmo uniforme sujo de graxa, escovava os dentes, passava desodorante, ajoelhava e orava. Saía todo dia com fome e com ódio, trabalhava tanto tempo na mesma empresa e mesmo assim não tinha dinheiro nem para comprar um carro popular, pelo menos o  dinheiro dava para fazer o puxadinho na laje de casa, só nos últimos quatro anos construiu dois quartos e um banheiro no andar de cima da casa, e agora estava pintando a parte de fora, depois disso deixaria de dormir com a mãe e o irmão no mesmo cômodo. Eram esses pequenos progressos que deixava Ricardo disposto para subir a ladeira e ir para a fábrica.
     Seu patrão era um japonês, o Sr. Tadashi, homem observador, de intuição certeira, sabia escolher  sem errar, os melhores peões da quebrada, fortes, dedicados e dispostos a suar sangue  em troca de oito notas azuis. A tarefa de Ricardo na fábrica era manobrar as ferramentas com destreza, segurança e rapidez, os anos ininterruptos serviram para tal graça, sua função era consertar as máquinas que apresentavam defeitos, dessas máquinas surgiam inúmeras ferramentas usadas no dia a dia: como porcas, parafusos, pregos... só não saía a felicidade e paz para Ricardo.
Aquela sexta-feira 13 estava estranha  - Tição-   como era chamado desde pequeno, já sentira o ar pesado na fábrica,  todos pareciam esperar algo de ruim, como se não tivessem tomado café da manhã, aliás, o patrão tinha suspendido as refeições bancadas pela empresa, alegando cortes nas despesas “desnecessárias”.  
     Chegou a hora do almoço, momento comemorado por Ricardo, que além de matar a fome, gozava do privilégio  de sua mãe sempre deixar a refeição pronta exatamente às 11:45, Ricardo chegava ao meio dia em casa. Ao passar no almoxarifado para marcar sua hora de saída para almoço, sente alguém cutucar seu ombro, olha para trás, da um passo pro lado e arregala os olhos, era o seu patrão que o chamava, o seu “dono”, o homem que lhe devia a dignidade de ter um trabalho, o homem que cometia desprazer de depositar 8 notas de cem em sua conta bancária, - o Kamikaze,  apelido dado secretamente pelos funcionários que alimentavam grande irá pelo patrão -, fez um sinal com o dedo para Ricardo o acompanhar até sua sala.
     Tadashi à esta altura, estava  com muita pressa, pois naquela tarde iria viajar ao Paraguai, iria assinar uma concessão com o governo, para assim, abrir uma nova fábrica naquele país, aproveitando sua mão de obra barata e semi analfabeta.
O empresário foi curto e objetivo com Ricardo.
 - É o seguinte, te chamei aqui pra lhe dizer que a empresa está passando por dificuldades financeiras, esta crise está me dando prejuízo, e...
- Mas Tadashi ! – exclamou Ricardo tentando interromper o patrão.
- Primeiramente, é Senhor Tadashi pra você - advertiu o patrão já zangado e impaciente.
- Em quem você votou ? Na Dilma não foi? Graças à ela estou quase fechando as portas da fábrica, esses comunistas malditos estão afundando o Brasil, mas você é grato à ela né, claro, sua mãe recebe o bolsa família.
Ricardo já se encontrava contrariado , não suportava que terceiros falassem de sua mãe, tomou coragem e disse de forma desafiante:
- Já procurou ver se no Japão está melhor ?
Aquela ousadia irritou o patrão que no mesmo momento esbravejou.
- Estou tendo que mandar gente embora, você é um deles, vá almoçar e nem precisa voltar, amanhã cedo você pega o dinheiro do mês. Não precisa se despedir, aliás vou mandar mais gente embora, vocês se veem depois na rua.
Ricardo estava em choque.
- Eu estou devendo três prestações das Casas Bahia, tenho que comprar a laje de dois quartos, tenho que...
De modo metódico e seco Tadashi responde:
- Olha aqui seu preto burro, isso não é problema meu, e vá almoçar, não precisa voltar, é a última vez que falo.
     Ricardo ouviu e digeriu aquelas palavras em seco, sentiu raiva e rancor, passou a mão em seu rosto magro, olhou para a mesa e viu uma tesoura, sentiu vontade de enfiar a ponta daquele objeto na garganta daquele homem,  talvez sentiria prazer em ver aquela pele branca se tornar vermelha e depois amarela, talvez sentiria prazer em ver o  sangue em cima da mesa, poderia também enfiar a ponta da tesoura no olho direito daquele japonês racista, tiraria o olho para fora e jogaria no meio do pátio da fábrica, seria um herói, todos iriam cumprimentá-lo.
Ricardo pensava tudo isso enquanto o patrão assinava a sua carta de demissão.
- Toma aqui neguinho, se quiser guardar de recordação... fique à vontade.
Ricardo o agradeceu e de forma seca responde.
-  Pode deixar. Boa tarde.
Já era meio dia e cinco, Dona Tereza, mãe de Ricardo, aguardava deitada o filho que pela primeira vez atrasava para o almoço.
No caminho de volta para casa, Ricardo estava pensativo,  andava devagar, tinha o ódio em seu coração. Trinta anos de humilhação pra nada, não tinha forças nem para chorar, a forma que foi tratado pelo patrão, agora ex, foi humilhante, sabia que não merecia aquilo, ser chamado de preto burro foi o cúmulo. Seu coração queimava, sentia o efeito do ódio, naquele momento era tudo que restava, a cada passo, a cada respirada, era mais ódio, já não sentia  fome e nem cansaço.  Desceu a Rua olhando pra cima, começou a gingar como se nada tivesse acontecido,  àquela altura já tinha decidido tudo.
Chegou em casa e foi direto abraçar sua mãe, colocou comida no prato, naquele dia tinha arroz, feijão e linguiça frita com cebola, era seu prato preferido. Em seguida deitou e dormiu profundamente, o sono profundo fez com que Ricardo sonhasse com sua infância sofrida e ao mesmo tempo esperançosa, sonhou que entregava a chave de uma casa novinha para sua mãe, era sua grande promessa de infância, desde pequeno quando via sua mãe chorar pelos cantos da casa mofada e cheia de goteira, ia logo dizendo:
- Chora não mainha, eu vou trabalhar e comprar uma casa para você tá bom? Não vai ter nenhuma pingueira, eu vou fazer ela no lugar onde faz muito sol, e eu....
Dona Tereza ao ouvir aquelas palavras pedia à Deus para cuidar de seu filho, e que não deixasse ele desviar do caminho, o abraçava enquanto soluçava
Ricardo mantinha tudo aquilo vivo na memória.
     Ricardo acorda.
     Ao ir ao quarto da mãe observa que ela ainda está dormindo. Em seguida vai para o banheiro, para em frente o  espelho e se depara com um rosto negro e magro. Ricardo tentou sorrir, se achou feio sorrindo, tentou novamente sorrir, teve certeza de que a felicidade não combinava com sua fisionomia. Tirou a camiseta, o pescoço fino e seco não o estranhava, o que mais lhe preocupava era seu tórax de aspecto raquítico, sem vida, as marcas das suas costelas nitidamente às mostras, pensou estar doente, uma doença grave, preferiu não acreditar, escolheu acreditar que era por causa da fome que desde criança o assolava. Sabia que aquela cena horrenda o afastava das mulheres, Ricardo sabia muito bem que não se encaixava no padrão, sabia que não era igual o galã da novela, não era branco, não tinha cabelo grisalho, não tinha a pele brilhando, a barba por fazer, os olhos azuis... ao invés disso a realidade era outra, estava ficando careca, com os pelos da barba encravando no rosto, dentes podres, olhos amarelados, sua autoestima ia ladeira abaixo à cada propaganda nova,  sempre com os mesmos modelos midiáticos.
     Aquela sessão de masoquismo no banheiro  de sua casa já  era o suficiente para Ricardo perder a noção do tempo,  ao todo, ficara lá por quase uma hora se desgraçando por ser aquela pessoa sem nada, decidiu se vestir e sair para rua, decidiu ir logo procurando seus amigos de fábrica, aliás, todos ali na rua trabalhavam por lá. Alguns consertavam máquinas, outros limpavam elas, tinha os que carregavam elas, mas nenhum era dono delas.
     Encontrou Zeca e Serginho cheirando cocaína na porta do bar, os cumprimentou  perguntando se tinham ido trabalhar hoje, ambos responderam que sim, porem Zeca respondeu que foi demitido por justa causa, e que o patrão deu o motivo de que supostamente Zeca teria roubado um martelo da fábrica.  Já Serginho respondeu que foi demitido depois que o patrão alegou que a fábrica estava saindo no prejuízo, por culpa da crise.
     Ao ouvir isso Ricardo sentiu-se satisfeito, por um lado queria ouvir aquilo, aliás precisava de mais pessoas para fazer o que planejava ao sair da fábrica no puro ódio. Os três amigos dialogam até o anoitecer. Despediu-se de seus parceiros. Voltou para casa e ao chegar no portão sentiu o cheiro da comida de sua mãe, Ricardo tinha dado sorte, Dona Teresa já havia colocado as panelas na mesa, o ex-operário comia tudo o que via pela frente, tinha mandioca frita, linguiça com cebola, arroz, feijão com bacon e salada, tinha ainda algo raro em suas refeições: suco natural de fruta. Sua mãe tinha escolhido abacaxi. Suco gelado depois de um dia estressante era um sonho de muito malandro.
     Sentou-se a mesa, sua mãe puxou assunto mesmo que receosa.
-  Filho, viu seu irmão?
Mesmo com comida na boca Ricardo responde.
- Não sei mainha,  ele não estava dormindo?
- Sim, mas acordou, saiu faz 40 minutos, você não viu ele na rua?
- Vixe mainha vai ver ele foi  na quadra do Mimás jogar um fut.
- Mas porque essa hora da noite fiu ?
- É por que essas horas os moleques chegam do trampo, e...
Sua mãe interrompe.
- Quer mais suco ?
Mesmo engasgando Ricardo responde:
- Sim mainha, coloca mais ai.
Dona Tereza muda de assunto.
- Ricardo você mexeu nas nossas fotos antigas hoje, estavam escondida lá no quintal como você achou?
- Vixe mainha a senhora não sabe mais esconder as coisas de mim...
     Os dois riram ao mesmo tempo.
     No fundo sentiam falta do passado, Ricardo sentia falta de quando sua mãe ia busca-lo na escola todo dia, na chuva ou no sol, depois levava ele na doceria e deixava ele escolher dois reais de doces, Ricardo escolhia sempre um único doce, a paçoca. Já sua mãe sentia falta de lavar aquelas roupinhas pequenas de criança, Ricardo vestia de tudo: macacão, shorts, calça, regata...  tudo isso fazia com que Teresa gastasse horas do dia naquela tarefa, depois agradecia à Deus por ter dado o filho que tanto pedira, um  homem que pudesse cuidar dela na velhice que protegesse ela de qualquer injustiça.
Ricardo ainda não sabia como iria contar para sua mãe que foi demitido, e ainda por cima humilhado, olhava para ela e se deparava com aquele rosto cansando e sofrido, preferiu poupá-la, levantou-se da mesa, deu um abraço nela, à agradeceu por tudo e saiu.
     Foi direto para laje, ali era seu Santuário, sua sala de reuniões, onde apenas UM poderia ser convidado, Deus. Naquele local havia ocorrido inúmeros conversas, apenas os dois. Mas Ricardo não subiu ali para conversa, naquela noite Ricardo apenas pediu a bênção divina para ter êxito no seu plano do dia seguinte, em seguida foi  pra sua cama. Tirou sua camiseta e deitou naquele colchão fino que o deixava todo dia com dores nas costas, ao acordar, porem não reclamava, sabia que tinha pessoas em piores condições. Não demorou muito para sentir sono, adormeceu.

     Relógio desperta exatamente às cinco horas da manhã, desliga o relógio, levanta, tira as remelas dos olhos, vai direto ao banheiro, levanta a tampa da privada ainda tonto de sono, tenta mirar seu membro na direção certa, mas acaba errando o alvo e assim molhando todo ao redor do vaso, aperta a descarga, vê uma toalha verde escura pendurada, passa no vaso e o seca, pendura novamente a toalha, lava o rosto, isso faz com que Ricardo despertasse mais rápido, pega sua escova e o tubo de pasta, começa a escovar os dentes, sente um gosto horrível de sabão, esbravejou ao saber que na verdade aquilo era o creme de barbear, desiste de escovar o dentes. Passa o desodorante, veste a camisa, olha pela janela vê que já está clareando, calça seu chinelo, faz o sinal-da-cruz pega sua mochila e sai fora.

     Ali debaixo daquele pé de abacate foi escolhido à dedo pelos amigos Zeca e Serginho, que fumam um belo baseado enquanto esperavam Ricardo.
Quando faltava apenas uma pontinha para o baseado acabar, surge Ricardo, ali do meio do mato alto, olhar farejador, dominante e raivoso. Ricardo de longe sente o cheiro da erva no ar, chega até seus parceiros e já esbravejando pergunta:
- Não sobrou nem metade do baseado?
- Tu demorou demais... - respondeu Serginho -  eu pensei que você tinha um verde do bom em casa filhão.
- Esqueceu que eu perdi o trampo?! – responde Ricardo tentando aconselhar o amigo – a gente só compra quando tem dinheiro sobrando. Mas aí negão, vamos abater?
- HAHAHA !!! É agora, é o Dia D.
 Começaram a andar devagar, gingando. Serginho anda na frente, ouvindo GOG pelos fones de ouvido, regata do Facção Central, miçanga marrom, short do exército e chinelos.  Zeca vinha com seus dreads escuros, tatuagem até os pescoço, rosto cheio de feridas e cicatrizes, relógio dourado, regata vermelha, olhar sedento por violência, shorts do Santos e tênis Adidas. Renato vinha pelo meio da rua, gingava, olhava para tudo que estava acima dele. Estava à procura de câmeras, na avenida do Paulo Chagas enfim avista uma, parou em frente ela, mostrou o dedo e saiu.
     Os três amigos viraram pela esquina da delegacia e desceram a ladeira, entraram na direita e descem o escadão, atravessaram a rua e descem o outro escadão, descem a Rua da Macumba, viram à esquerda, descem outra ladeira, passam pela praça e chegam na fábrica Tadashi LTDA.
     Tocam a campainha, a moça do almoxarifado os recebe sem desconfiança, eles agradecem por ela não saber que eles foram demitidos. Pelos corredores Renato faz um simples olhar mensageiro para Serginho, que automaticamente entra no primeiro portão à esquerda, o portão do pátio da fábrica. Zeca mexe na mochila enquanto acompanha Ricardo, que por sua vez se direciona até o escritório da fábrica tira um isqueiro do bolso, e acende um cigarro.
     No meio do pátio Serginho ecoava gritos de incentivo aos ex-companheiros, citava Zumbi, Malcom X  e até  Jussara Machado. Com a ajuda de um megafone, informava à seus antigos companheiros proletários que a fábrica estava sendo ocupada e que Ricardo e Zeca já estavam no escritório tratando pessoalmente com o patrão.
 Amarrado e com os olhos arregalados, Tadashi assiste espantado Ricardo mexendo em seu notebook, que após encontrar as pastas com fotos particulares da sua família de férias em Orlando, decide quebrar o silêncio naquele escritório fazendo uma pergunta à seu ex patrão.
- Que tal trocarmos de lugar?... – ironizou - Eu vou para Orlando e você passa a dormir numa casa com pingueira ?!
O patrão com muito ódio responde.
O lugar da sua raça é na favela, no esgoto, seu arrombado, fedido, o lugar de vocês é na cadeia, no cemitério...
Zeca ouve aquilo decepcionado e balançando a cabeça negativamente, pois realmente tinha esperanças de que o empresário fosse pedir desculpas pelos insultos praticados no dia anterior, e assim livrar das cinzas o patrimônio daquele homem. Mas Ricardo é bem mais radical, ao ouvir aquilo, o sangue lhe sobe, a cabeça fervilha, cospe na cara do ex-patrão em seguida lhe da uma coronhada na nuca. Logo após chama Zeca para ir ao pátio.
Vai até o encontro de Serginho e pergunta se está tudo pronto, Serginho acena positivamente com a cabeça
Ricardo sobe em uma máquina e começa a falar enquanto Zeca e Serginho encontram-se à sua esquerda.
- Camaradas, imagino eu que Serginho tenha contado o motivo desta ocupação. Quero lhes dizer, que isto é um gesto de revolta, de ódio, repúdio,  retaliação contra um ato de racismo, preconceito e descaso com o nosso povo. Conto com o humilde apoio de vocês, aliás, deixarei à critério de todos apoiar ou não o que estamos pretendendo. Ao ser demitido, ouvi palavras de baixo calão contra minha pessoa, imagino eu que se a maioria de vocês estivessem em meu lugar, também sentiriam o peso do ódio, do rancor de ter alguém te humilhando a nenhum custo. Os tempos de cativeiros acabaram, porém métodos se perpetuam, e ainda continuam à assolar a mente de humanos pobres de conhecimento. O que proponho aqui é apenas um grito para nossa liberdade.
   v Ricardo levanta o punho esquerdo e faz a seguinte pergunta à seus colegas.
- Tenho o apoio de vocês ?
 As dezenas de peões gritam em conjunto:
-  SIM !!!
 Em seguida Zeca grita:
- O que vocês querem ?
A multidão responde:
- FOGO !!!
Depois foi a vez de Serginho:
- O que queremos?
A multidão aumenta mais o tom e a intensidade:
- FOGO ! FOGO! FOGO !
Ricardo faz um gesto com a mão, e ordena que Zeca traga o patrão amarrado para o pátio da fábrica.
     O líder olha aquela multidão à sua frente, sonhava com aquele momento a noite toda, nunca duvidou do seu potencial de líder. Sabia que ali em suas palavras vários irmãos se espelhavam.
     Ali ao seu lado, Serginho sonhava em ter poder em mãos, preferia acreditar que se quisesse mudar para melhor a vida de seu povo deveria ele, tomar de assalto todo o sistema, deveria ele mesmo ditar as regras do jogo e ali naquela fábrica acabaria de dar o primeiro passo. Andando pelo corredor em direção ao escritório, Zeca sonhava com um dia de paz em seu bairro, desejava viver em um terreno só seu, no meio do mato, seringueira com balanço, uma horta, e uma mulher para amar a noite inteira.
     Volta até o pátio arrastando o japonês pelos cabelos  e a base de socos e pontapés, Zeca desconta ali toda sua raiva.
     Ricardo faz questão dele mesmo derramar o  álcool que trouxera na mochila. Tadashi observar aquilo fixando os olhos em Ricardo, ali mesmo se conforma e lembra do ditado: um dia da caça outro do caçador.
     Vê aquelas chamas consumirem todo seu esforço, décadas de trabalho se transformam aos poucos em apenas cinzas, as notas de dinheiro no chão, o autorretrato da família... Aquilo tudo fazia com que Tadashi Ikeda dos Santos Alves, pedisse perdão à Deus, perdão por ser preconceituoso e intolerante.
   
As chamas começavam a consumir seu corpo branco, sentia seus pulmões ferverem por dentro, seus olhos pareciam querer saltar do rosto, a roupa e sua pele já eram apenas uma, a língua começa a enrolar. Solta seus últimos gritos de dor, ele para, parece morrer em silêncio. A ultima imagem que vê, mesmo que embaçada e de um olho só, é de uma multidão saindo pelo portão. Ricardo, o último a sair, faz seu ultimo gesto: tira do bolso sua carta de demissão, amassa e joga em direção àquele corpo carbonizado.