quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

FELIZ NATAL

Acordei bem disposto,  até porque hoje é véspera de Natal, então aproveito que todo mundo está bonzinho, sorrindo e feliz. Menos eu, não estou bonzinho,  nem sorrindo e nem feliz hoje, e nem no resto do ano, muito pelo contrário, estou maldoso, com raiva e triste.  Enquanto todo mundo vai viajar, preparar a ceia do maldito Natal eu vou ter que ir pra Praça do Campo Limpo, lá tem vários faróis. O meu ponto é na Avenida de cima,  o zóio de gato comanda a Avenida debaixo,  antes era do Mortadela,  mas os dois brigaram, quem ganhasse ficaria com comando da avenida. O zóio de gato foi covarde,  escondia um canivete na cueca.

Pra atrair as pessoas eu tenho que fazer o mesmo discurso:
- Oi senhora, minha família passa necessidade tem como dar uma ajudinha?
- Toma aqui neguinho, se comprar droga eu te mato!!!

Era sempre a mesma coisa. O melhor jeito para atrair a clientela era fazer o que meu tio me ensinou. Era só  balançar os cabos de vassouras quebrados no meio, fazer uns malabarismos pra pagar de artista e pronto! Qualquer idiota iria achar que eu era um artista de circo promissor.

Tenho que ir pro “trabalho” a pé!  Faz muito sol, sempre que está muito sol eu peço geladinho de manga pro tiozinho do bar, ele é firmeza.
- Tio tem o de manga?
- Tem não  meu filho,  mas rapaz,  veja se tem o de abacate lá nos fundos.
Eu também gosto do de abacate,  sendo gelado podia ser até de quiabo,  chupo o geladinho rápido, se derreter eu tô fudido, suco de abacate é ruim demais.

Quando eu chego lá,  ainda tem poucos carros nas ruas,  sento lá na praça e ficou olhando o movimento, hoje tem bastante gente com bicicleta, patins e skate, se eu tivesse bicicleta, eu não iria ficar me exibindo que nem besta, eu iria montar uma mini empresa,  iria emprestar a bicicleta pra todo mundo, mas cobrando 5 reais pra cada hora, iria fazer vários cartazes "aluga-se bicicleta", ia ficar rico rapidinho,  iria comprar uma casa no lugar mais alto da favela, levar minha família pra lá,  ia dar 50 reais pra minha mãe todo mês pra ela fazer compra, iria dar 10 pro meu irmãozinho,  o resto ia ficar comigo,  eu compraria vários pipas e ia passar o dia todo soltando pipa.
-  Manda a busca ae filho da puta!!!
-Ae viado tô sem cerol...
- Vou cortar na mão caralho,  vou cortar na mão!!!
- Ae se cortar na mão,  vou te arrebentar...
- Pode vim filho da puta!!!

A avenida tá ficando cheia vou subir pra lá. Tô com fome, o primeiro dinheiro que eu pegar vou comprar uma coxinha e um suco de limão. Suco de limão é bom,  minha prima gosta...
Eu sei fazer muitas coisas no farol,  tudo pras pessoas me acharem  um artista,  eu planto bananeira,  canto música do Tim Maia (minha voz ficou igualzinha a dele), eu faço malabarismo com os pedaços de pau,  jogo bilhetinho pela janela... mas o que dá muito dinheiro é fazer malabarismo com bolinhas de tênis. Ontem eu estava jogando uma bolinha pro alto e escutei umas gargalhadas de criança, fui seguindo o som, está vindo de um carro muito chique,  fui fazer perto dela, ela dava muita risada e isso me deixava satisfeito,  acho que isso era melhor do que receber umas moedinhas.  Fiquei alguns segundos,  não podia errar,  se eu errasse a criança iria parar de rir,  mas do nada o motorista apertou um botão lá dentro do carro e o vidro começou a subir,  até que eu estava acostumado a ter vidro fechado na minha cara quando eu chegava muito perto. Mas a criança estava rindo e eu não estava armado.

O sinal abriu,  tenho que sair da rua senão os motoqueiros ficam me xingando denovo. Ano passado um me chutou bem na barriga. Vomitei sangue. Fui pra casa e minha mãe cuidou de mim,  me deu um chá muito amargo,  e no outro dia eu estava curado.
Tô cansado,  ta muito sol,  vou sentar na praça outra vez. Não quero mais trabalhar assim,  eu vi na TV,  que nesse país existe crianças que brincam em piscina e escorregador,  também vi na TV que existe um lugar chamado Disney,  minha mãe disse que o lugar não existe na terra,  só no céu,  que quando eu morrer vou ficar brincando lá pra sempre. Eu acredito nela.
Eu tô pensando em sair porque ontem eu pensei que ia morrer.  Ontem eu estava trabalhando como qualquer dia normal,  eu não tinha comido nada,  estava com muita tontura,  sentei na calçada.
Quando o farol fechou,  uma moça buzinou e me chamou:
- Ei menino,  está triste?
- Não moça,  é que eu tô com fome,  tô mole...
- Quer água?  Oh,  tá geladinha....
- Me dá aqui,  tô com sede também,  pô,  valeu mesmo eim tia...
- Como é seu nome? Quer almoçar?
- Meu nome é Carlinhos, foi minha mãe que escolheu....
- E cadê ela?
- Tá catando papelão lá perto de casa...
- Você mora longe?
- Moro!
- Tô indo almoçar,  quer ir comigo?
- Minha mãe me ensinou a não sair com estranhos.
- Mas eu não sou uma estranha,  sou sua amiga,  sei até seu nome...
Decidi ir,  o carro era enorme,  tinha cheiro de perfume,  tentei gravar o caminho pra poder voltar sozinho.  Passamos por uns prédios bem grandes,  a moça entrou numa rua bem estreita, ai eu desconfiei...
- Tia tá chegando?  Tô com muita fome...
- Sim,  estamos quase lá,  aguenta mais um pouco....
Naquela hora eu queria sair do carro,  estava com medo,  mas primeiro eu ia comer,  pra depois fugir.  Quando chegamos,  ela fechou todos os vidros do carro,  entrou na garagem de um prédio,  a casa dela era lá em cima,  bem em cima...
Subimos pelo elevador e entramos numa casa muito chique,  ela mandou eu sentar,  eu pedi um copo d'água,  ela me deu,  estava bem gelado,  Mas com um gosto meio salgado,  foi ai que eu percebi que tinha um pozinho branco no fundo do copo,  comecei a me sentir mal,  mas eu fui forte e resisti.
 Sempre antes de sair de casa minha mãe me dava vários conselhos,  eu sempre ouvia,  mas hoje eu desobedeci ela.
- Menino tá levando a chave de fenda que eu te dei?
-  Tô mãe...
- Não esquece!  Se algum estranho mexer com você,  tu se defende,  não deixa ninguém te fazer mal,  não entra em carro de estranhos...
Coração de mãe nunca erra! Comecei a chorar,  estava com saudade dela,  queria sair daquele lugar. Mexi na meia e lembrei que a chave de fenda ainda estava escondida,  limpei as lágrimas e decidi,  rezei o pai nosso bem rapidinho...
Me levantei bem devagar,  sem fazer barulho, fui no banheiro ninguém estava,  fui na cozinha e lá estava ela,  falando ao telefone,  fui andando bem devagarinho,  coloquei a chave de fenda  na mão direita,  bem na hora que ela ia se virar pra frente,  não perdi tempo,  meti a chave de fenda bem no olho dela,  ela ainda tentou gritar,  mas eu enforquei ela,  derrubei ela no chão,  peguei uma faca na pia e dei várias facadas no pescoço dela,  igual eu vi no filme que assisti na escola,  dei vários chutes nela, minhas mãos ficaram cheias de sangue, lavei elas na pia. Abri a geladeira,  tinha vários doces lá,  umas pingas,  umas frutas.  Coloquei tudo de gostoso dentro de uma sacola,  fui pra sala e vi um relógio e também levei pra dar pra minha mãe,  saí de lá com a barriga e a sacola cheia.
Eu não  sabia onde estava,  mas vi que as pessoas andavam bem depressa,  os homens vestiam terno e as mulheres vestidos.  Como minha mãe me ensinou a me virar sozinho,  fui olhando as placas: Avenida Paraíso,  Avenida Paulista,  Rua da Consolação,  em instantes eu já sabia onde estava,  era só pegar um busão branco e vinho que ia direto pro Terminal Campo Limpo.
- Cobrador posso passar por baixo da catraca?
- O que você tem ai na sacola?
- umas frutas, uns doces, bolos...
- Me da umas frutas ai moleque!
- Toma!
- Pode passar,  mas não acostuma...
Essa história eu não contei pra minha mãe, foi engraçado quando ela viu a sacola cheia de comida, ficou bem feliz, ela chamou todos os meninos da rua pra comer em casa.  Me senti um herói.

Acho que vai chover, tô sentado aqui já faz tempo,  não posso chegar em casa à noite, na rua de casa não tem luz,  e minha mãe fica preocupada. Vou andando ate minha casa, por isso eu tô magrelo,  eu ando, ando e como pouca comida.
Hoje ganhei 29 reais no “trabalho”, da pra comprar arroz, feijão, e alguma mistura, vou comprar carne seca, hoje eu tô chique.
O que adianta chegar em casa é não ter nada pra fazer? Tá chovendo muito, e lá fora tá  ficando alagado, daqui a pouco a água entra aqui dentro. Vou deitar agora.
UFFFFAAAA!!! Como é bom descansar, minha mãe está deitada vendo novela, meu irmão tá dormindo na outra cama, vou dormir, amanhã tenho que acordar cedo novamente.

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