quinta-feira, 18 de agosto de 2016
ACERTO DE CONTAS COM DEUS
Ângela arrumava o colarinho do filho enquanto ditava pausadamente os últimos sermões:
- Tá escutando né ?... Nada de falar com estranhos, só saia da escola comigo, só sai quando eu for te buscar, tem muita gente ruim nesse mundo, tá escutando né menino ?
- Ai mainha !!! - disse Artur com ar de reclamação.
Mesmo assim, aquela mãe super cuidadosa continuava com os ensinamentos:
-Vê se come a merenda da escola viu... você sabe que não tem comida aqui em casa. Quando for por a comida na boca olha bem antes, pra não comer bactéria. - finalizou a mãe.
Ângela sabia que estava exagerando ao falar tudo aquilo para uma criança de apenas 7 anos, porém o que predominava na mente dela era uma única palavra: proteção !
Artur era seu filho mais velho, o primogênito . Um menino preto de cabeça raspada à zero na maquininha, nariz achatado e boca grande, olhos pequenos e amarelos, orelhas que lembravam as dos pitbulls, barriga inchada e um aspecto raquítico como se estivesse desnutrido e com os ossos marcando seu corpo. O que compensava se aspecto magro e fraco, era sua força de vontade e inteligência. Aos cinco anos de idade já sabiam ler e escrever, incentivado por sua mãe, alimentava o desejo de tornar-se doutor, e assim, comprar uma casa, um carro e muita comida para sua família e aquele primeiro dia de aula era o passo inicial daquela importante missão que estava disposto a cumprir. As aulas na escola do bairro começavam às 13 horas, mas àquela altura o menino preto já encontrava-se ansioso. Tudo o que seus amigos diziam nas brincadeiras de rua, eram que na escola havia muita comida,muitas brincadeiras, várias quadras pra jogarem bola, entre outras coisas que agradava meninos e meninas das periferias brasileiras.
A hora de sair de casa se aproximava. Sua mãe continuava falando alto e intensamente enquanto a mente de Artur se encontrava bem longe dali. Porém, apesar da pouca idade, o menino tinha consciência dos perigos de uma criança ficar longe da mãe por horas seguidas em lugares que não conhecia. Decidiu escutar com paciência sua mãe ditar-lhe as regras...
- Filho, obedece a professora viu. Trate ela bem, porque a professora vai te ajudar a virar um homem bom e justo. Desse jeito você vai poder me ajudar quando eu estiver velhinha. A professora é boa, ela é sua amiga, a professora é...
- Ai mainha, ta bom ! - Resmungou o menino já irritado - Segunda vez que a senhora diz isso pra mim, que saco !
- Filho, ouve a mamãe, você é o meu filho mais velho. Quem vai ajudar a mamãe quando ela estiver doente ? Deus não gosta de filho rebelde. - Expressava-se a mãe com ternura e tristeza de quem iria ficar longe do filho por horas pela primeira vez.
- Eu sei mainha. Mais cê tá exagerando um pouquinho, e...
O telefone da mesa começa a tocar e a mãe corre pra atender.
- Alô quem fala ?
- Alô, aqui quem fala é da escola Reinaldo Saldanha, aqui do Jardim Nossa Senhora de Fátima. Estamos ligando para todos os pais dos alunos e alunas matriculados nessa escola. Queremos informar-lhe que houve um certo atraso pontual do repasse da prefeitura para a compra da merenda escolar, e que...
- Nossa moça, quer dizer que as crianças vão passar fome na sala? - interrompia numa mistura de raiva e preocupação.
- Não necessariamente Senhora - respondeu a funcionária de forma calma e polida - Para isso estamos recomendando para todos os pais e mães dos alunos, à prepararem um lanche e darem para as crianças levarem. Alguns professores da rede levantaram até a hipótese para recomendarmos os pais e mães, que tragam seus filhos e filhas à escola já almoçados de forma reforçada...
- Minha fia, cadê o dinheiro dos meus impostos ? - interrompeu a mãe já revoltada - Eu paguei o uniforme, os cadernos, os lápis, e ainda tenho que pagar a comida? Não é escola pública?.. Meu Deus...
- Senhora, eu não tenho condições de informá-la devidamente sobre estes assuntos burocráticos. Minha função é apenas informar-lhe das decisões de meus superiores. De todo modo, muito obrigado pela sua atenção. Tenha um bom dia.
- Superiores ? Onde que eles estão ? Chama eles ai pra mim ter um papinho com eles. - dizia a mãe num tom desafiador.
Seus esforços para ter um dialogo com os responsáveis por aquelas baboseiras foram em vão, tudo o que ouvia do outro lado da linha era o sinal sonoro do final da ligação.
Logo após a despedida abrupta da funcionária da escola, Ângela encontrava-se transtornada. Sentiu um frio na barriga assim que lembrou-se do que tinha na geladeira, ou melhor, daquilo que não tinha nela. A geladeira era ocupada apenas por água congelada, meio repolho, alguns poucos centímetros de linguiça calabresa e um pote com uma ínfima quantidade de farinha de mandioca. Aquele cenário desolador acendera a chama do ódio em sua alma. Logo no primeiro dia de aula de seu filho mais velho mandaria-o com fome até a escola, ou no máximo, uma má alimentação. Meio que automaticamente, pensava tudo isso e ao mesmo tempo abria o armário, pegando facas, pratos, colheres, vasilhas, para assim , tentar preparar uma semi-refeição ao seu filho.
Ângela lavou o repolho na água corrente, depois picou a linguiça e peneirou a farinha. Em seguida, jogou tudo na frigideira, misturou, tacou uma pitada de sal e um pouco de azeite. Em seguida chamou seu filho:
- Artur, levanta, vem comer, a mamãe vai te dar um lanche, vem logo que cê ta atrasado !
Enquanto o pequeno menino caminhava em direção ao fogão, as pernas daquela mãe tremiam, as entranhas começavam-se à relaxar, o frio possuía as partes íntimas, criando a péssima sensação de estar defecando. Aquilo era o grande efeito de medo percorrendo o corpo daquela mulher, levando-a à delírios enquanto acordada, recompõe-se apenas com uma cutucada em seu braço.
- Mainha, mainha ! Cê tá bem ? O que tem pra comer ai ? Mainha? Acorda mainha...
- Oh meus Deus ! Toma aqui. - tisc tisc tisc - Mamãe já colocou no prato pra você, viu ? - dizia a mãe tentando disfarçar seus delírios.
Ao observar aquele pequeno menino comendo, Ângela lamentava-se por não ser uma mãe completa, uma mãe igual aos filmes e novelas, uma mãe que fazia café da manhã cheio de pães, frutas, iorgutes, leite, queijos, frutas, etc. Queixava-se por não ter uma geladeira cheia de verduras, legumes, carnes. Se tivesse tudo isso, iria preparar 5 refeições por dia, e toda sua família nunca mais iria passar fome novamente. Mas a realidade não era assim, era bem mais dura e cruel, e ela sabia perfeitamente. Sabia que a culpa disso estava em alguém, e essa pessoa era sua própria mãe, que por não à ter deixado estudar e conquistado um bom emprego. Ao invés de ir para a escola, a menina era obrigada a catar papelão, latinha e todo material reciclável, e assim, complementar na renda de sua família. Foi uma infância infeliz, cheias de responsabilidades que só adultos poderiam ter. Ao tornar-se mãe, reacendera em si a chama da vida, estava disposta a dar do bom e do melhor ao seu primogênito. Mas por enquanto, sentia que estava falhando na missão.
- Mainha, terminei ! Cê vai me levar hoje ?
- Sim, vou te levar.Vá escovar os dentes. Não esquece de passar creme nas canelas por que elas estão bem cinzas, não quero que ninguém ache que meu filho não tem mãe. - respondeu enquanto colocava o turbante pra sair.
***
O cenário até a escola era comum para Artur. Ao passar pela Igreja Católica que ficava em sua rua, descia até a pracinha, à atravessava até o coreto, onde logo havia o ponto de ônibus, virava à direita e pegava a Avenida Aimará, descia ela até a esquina do mercadinho, lá encontravam as esquinas da Avenidas Aimará e Rotary, onde atravessavam a última. Desceram uma rua de mão única, andavam cerca de 500 metros até uma ponte de madeira. Ao passar por essa ponte, o menino sentiu medo, pois a ponte rugia e estava apodrecida, tentava evitar, mas sempre acabava olhando pra baixo, onde via cachorros, gatos, pombos, urubus e ratos (vivos e mortos), esgoto industrial, entulho e todo os tipos de dejetos humano, entre tantos outros restos descartados e criados no bairro e arredores. Terminando de passar pela ponte, mãe e filho pegava a última rua à esquerda. logo após essa rua, começava uma área denominada de "alta periculosidade" pelas autoridades públicas. Justamente por conter pessoas com extrema ausência de educação, empregos dignos, incentivo à cultura, acesso à saúde de qualidade, mobilidade urbana, entre outros serviços básicos essenciais para todos os cidadãos brasileiros.
Artur estava empolgado. Por todo momento imaginava-se na sala de aula, obedecendo a professora, e o mais importante, comendo a merenda. Sim, a famosa merenda que toda criança quando entra pela primeira vez na escola sente vontade de experimentar e apreciar.
As outras crianças sempre estavam com coisas de comer em suas mãos, menos Artur, que ao passar por algum mercadinho de esquina, doceria ou sorveteria, disfarçava e fingia não estar com vontade, ele sabia já naquela idade, que dificilmente sua mãe teria condições de comprar, logo preferia sem exitar, poupar a mãe de tal desconforto, tinha também a influência que recebera em casa, pois foi educado à não ser pedinte, ainda mais na rua e na frente de todos.
Ao visualizar a escola, o futuro aluno do sistema neo-escravista brasileiro, começa a sentir-se mal, um frio na barriga o dominava completamente. Ao passo que observava os meninos parecidos com ele jogando bola na rua de barro, sentia-se pequeno e frágil, pois os outros garotos de sua idade eram bem maiores. Já começava a se imaginar apanhando dos maiores, dos mais bravos, mais valentes...
- Man-Man-Mainha, que horas você vem me buscar ? - tentava expressar-se enquanto se esforçava para segurar o choro ao mesmo tempo que passava a mão no rosto para secar os olhos marejados.
Em todo instante Ângela observava e refletia sobre o que via diante de seus olhos. Preocupava-se em notar a primeira impressão que seu filho estava tendo em seu primeiro dia de aula. Ao ouvir as palavras e olhar a feição do menino, procurou respondê-lo rapidamente sem mostrar-se distraída.
- Eu vou chegar cedo pra te buscar. Não esquece, só sai da escola quando você me ver, presta atenção na quantidade de pessoas ao seu redor, e mais, na fisionomia de todas elas. Nas cores dos cabelos, tênis, mochilas, gírias...
- Mainha, você sabe qual é minha sala ? - perguntou o menino preocupado.
- Vixi, num sei, vamos lá ver ?!
Adentraram o pátio central. A quantidade de pessoas lá dentro era bem maior. Era um local mais escuro, abafado e sem circulação. Aquele ambiente era pesado, quem tivesse problemas com lugares fechados, em instantes entraria em pânico. Aos que possuíam alguma doença respiratória, não aguentariam por muito tempo. (!) Em cada lado do pátio havia os banheiros, no direito o feminino e no esquerdo o masculino. O cheiro fétido e podre exalava dos dois ao mesmo tempo, dava ao ambiente um aspecto de abandono.
Artur notou cada banheiro: primeiro foi o feminino, onde lá observava a quantidade de meninas, que eram bonitas ao seus olhos devido a interpretação do ideal de mulher. Já o masculino o deixou bem espantado, principalmente à respeito das feições dos meninos ali parados na porta daquele banheiro. Vários deles com cicatrizes e hematomas no rosto, nos braços e pernas, nas mãos, na cabeça, havia um deles que usavam até muletas. A esperteza daquele menino o levava à lembranças que o faziam lembrar dos programas de TV que via todo dia ao fim da tarde. O programa sempre mostrava homens e mulheres parecidos com as pessoas que estavam ali à sua volta naquele pátio, sentiu muito medo pois o que era relatado nesses programas policialescos e sensacionalistas era o ideal de "marginal", de "assassino", de "psicopata", de "delinquentes", de "escória da sociedade", todos eles eram muito parecidos com os seus futuros amigos de colégio.
Tudo isso era novo para aquele menino. Ao mesmo tempo que sentia medo, sentira também fraqueza no corpo, sensação de querer volta atrás, aquela tal empolgação pra sair de casa e ir pra aula desaparecera completamente. A essência de Artur começava naquele momento, à se moldar conforme conhecia o mundo à sua volta.
- Olha mainha, várias listas, vamos lá pra ver se meu nome ta lá ?
- Ta, vamos logo porque já está todo mundo indo pras salas de aula.
As listas ficavam no final do pátio à esquerda. Era uma amontoação imensa de pessoas, o que dificultava o campo de visão. Com muito esforço, mãe e filho conseguem localizar a turma e a sala de Artur: 1° C, sala 13, Professora Jussara.
***
- Olá pessoal, sou a professora Jussara, vou ser a professora de vocês durante o ano - disse a professora demonstrando calma e serenidade.
- Vamos começar falando o nome de vocês, vamos começar por esse menino lindo aqui - a professora aponta o dedo para Artur .
O menino mesmo nervoso e tremendo por dentro, lutava para não demonstrar nada, imaginava que era preciso ser frio, aprendera isso com o próprio pai, pois ouvira desde cedo que homem que é homem não podia demonstrar emoções, e isso era cumprido à risca pelo garoto.
- Me-me-meu nome é Ar-Ar-Artur - disse possesso pela gagueira e o nervosismo.
- Huuuum, Artur, huuuum... que nome lindo não é classe ?
Ninguém ousa responder, o silêncio era o nome da vez naquela sala. A professora tenta de outro modo.
- Artur, quantos anos você tem ?
- Te-te-tenho oito....
- Artur você está nervoso ?
- Uhuum "fessôra"....
- HAHAHAHA, que menino lindinho, seja bem-vindo.
- Valeu "fessôra".
A professora continua.
- Muito bem, o próximo. Qual é o seu nome ?
- Carolina.
- Bárbara.
- Larissa.
- Pabla.
- Caio.
Artur observava tudo. A tremedeira passava aos poucos. Olhava e admirava aquela professora que era parecida com sua avó. As duas usavam um tipo de pano na cabeça que mais parecia uma coroa. As duas tinham a pele muito preta. As duas tinham dentes amarelados. As duas eram pequenas fisicamente e gigantes sentimentalmente. Tudo isso deixava o novo aluno da classe da primeira série mais à vontade, tudo nela parecia familiar, porém o garoto continuava não demonstrando emoções, persistia na seriedade, na secura, era irredutível. Os colegas logo perceberam, pois era o único que não dava risadas, mesmo o ambiente sendo muita das vezes, tomado por piadas realmente engraçadas.
O tempo foi passando e o recreio chegando. A barriga de Artur já roncava fazia um bom tempo. Não sabia como faria pra comer. Chegou a pensar que há qualquer momento a porta se abriria e entrariam várias pessoas com aventais e bandejas nas mãos cheias de comida para cada aluno. Neste exato momento o sinal bate de forma ensurdecedora. A professora abre a porta e todos os alunos saem correndo corredor afora. Apenas Artur ficara imóvel e sem saber o que fazer e nem pra onde ir. "Nossa, pra onde todo mundo vai?" - pensava enquanto olhava pra todos os lados com medo. "Ta todo mundo indo embora?" - insistia. "Porque não levam a mochila?". Começa então à sentir o cheiro da comida. "Acho que vou descer também, vou seguir eles".
Pelos corredores, aquele menino de apenas um metro e quinze de altura, se enche de cuidado para não esbarrar em ninguém maior que ele, pois sabe que em qualquer vacilo, poderia apanhar igual via nos filmes americanos que costuma ver nas "sessões da tarde".
Ao chegar até o pátio, depara-se com uma multidão muito maior do que tinha visto na entrada. Assusta-se com a quantidade de pessoas com pacotes de biscoitos na mão, sucos, e maçãs. Todo mundo igual. Olha pros lados, não vê ninguém conhecido. Avista um banco de cimento pra sentar e tentar raciocinar com mais 'clareza'. Fica ali tentando decifrar aquela cena. Mal sabia que aquelas imagens ficariam guardadas para sempre em sua memória.
***
Enquanto isso, em casa, Ângela encontra-se cantando hinos de sua igreja, recitando versos da bíblia, além de estar nervosa e aflita. "Oh meu Deus! Será que meu menino está comendo o lanche que a escola oferece?" - resmunga - "Ah Senhor esqueci, a escola não tem merenda, oh Senhor do céu, guarda meu menino, meu filhinho mais velho" - continua à lamentar - "Oh meu Deus, proteja ele de todo mal, Amém".
Automaticamente, passa a abrir todas as portas dos armários que encontra pela frente, atrás de uma única coisa: COMIDA ! "Senhor Jesus, Rei dos Reis, me dê forças pra aguentar essa prova, me dê forças pra carregar essa cruz, Amém". Foi então que começa então a se pentear, trocou de saia e saiu na rua atrás de uma única coisa: COMIDA !
- Oi Dona Zefa, será que a senhora tem umas bananas pra me dar ? - Ângela fazia cara de coitada propositalmente.
- 'Fia', eu não sei não viu. Vou dar uma olhada aqui. Vem cá minha fia...
E com um gesto nas mãos , Dona Zefinha chama aquela mãe desesperada para dentro de seu barraco.
Dona Zefa era a mais antiga da rua. Mulher de estatura baixa, turbante, bengala feita com galhos de árvores, banguela e o curioso: percorria as ruas da favela sempre com vários cachorros vira-latas atrás de si. Morava num barraco muito pequeno, os estranho era que o barraco localizava-se em um terreno enorme. Ao lado do barraco havia uma palmeira-imperial e muito mato. Os meninos tinham medo daquela mulher, eles a chamavam de "Dona Zefinha dos cachorros loucos" ou simplesmente "Bruxa Zefa". Aquela senhora calma nunca soubera desses apelidos, não parava em casa, ninguém sabia pra onde ela ia, todos os dias saia com a mãos vazias e voltava no fim da tarde cheia de latinhas de refrigerante, dando àquela mulher, um ar misterioso.
- Tome aqui minha fia, aqui tem umas coisas nessa caixa... - explicava a 'velha'.
Os olhos de Ângela brilhavam como estrelas.
- Deus abençoe Dona Zefa, a senh... - aumentava o tom de voz enquanto se afastava com rapidez...
No decorrer do caminho de volta, só pensava em uma coisa: COMIDA! Estava muito feliz, pois havia conseguido o que queria com muita facilidade. No mesmo momento ajoelhou-se, orou e agradeceu à Deus pela benção. " Oh Senhor, criador dos Céus e da Terra, obrigado por esta benção que tem me concedido. Toda honra e toda glória seja dada em seu bendito e magnífico nome. Amém"
As horas passavam à todo vapor na escola. Já escurecia quando a professora se despedia dos alunos. Artur estava exausto, com fome e com tontura, em nenhum momento consegui concentrar-se nas explicações da professora. Tudo rodava. Tudo entrava por um ouvido e saía pelo outro. Nada permanecia por mais de um minuto na mente do menino. Rapidamente guardou o material e esperou a hora de sair e encontrar sua mãe.
O som daquele sinal ensurdecedor soou como canto de pássaros em seus ouvidos. Exatamente como combinara com sua mãe, foi diretamente para o ponto de encontro: voltando pelo mesmo pátio no lado do banheiro feminino, havia uma caixa de luz, vermelha grande e de fácil visibilidade. Mesmo antes de chegar, já tinha avistado sua mãe de longe. De súbito, o semblante daquele menino miúdo muda. Parecia-lhe que estava sendo envolvido por novas energias. Começava a rir involuntariamente.
- Oi mainha, faz tempo que você chegou ?
- Faz muito tempo não...eu...ai, da um abraço aqui na mamãe. Como foi o primeiro dia de aula ?
- Foi bom mainha, a 'fessôra" parece a vovó, hihihihi. - respondeu propositalmente com uma risada, para assim não dar na cara que estava morrendo de fome. Mas como nada passa despercebido aos olhos de uma mãe...
- Toma aqui, olha o que eu trouxe - diz a mãe enquanto balançava um pacotinho de amendoim torrado.
Os olhos de Artur quase saltaram da orbita ocular.
- É tudo pra mim mainha ?
- É sim, come tudo agora e bem rápido, porque se seus irmãos verem vão achar ruim...
- Mainha, tem comida lá em casa ?
Nesse momento o coração da mãe congela e quase paralisa.
- Oh filho, não se preocupa... se não tiver Deus vai preparar tá ? - tentava desviar o foco do filho, mas em vão - Tá chegando dia 5, papai vai receber e comprar comida pra nós, o que você quer de comer ?
- Ah mainha, acho que quero nada não, é melhor reunir todo mundo em casa e fazer uma lista - sugeriu o menino.
- Mas escolhe alguma coisa pra mamãe comprar, pensa bem filho... - sugeriu a mãe.
- Já sei o que eu quero, uma bolacha recheada... mas tem que ser de morango tá ?
A mãe apenas concorda e sorri.
- Ah ! falta mais duas coisas... e queria aquelas uvas bem roxas e pequenas, daquelas bem doces, e também quero um pote de paçoca, acho que só isso, e...
- Eita filho, três coisas ? - interrompeu a mãe.
- Sim mainha, a paçoca e a bolacha eu vi com os meninos da minha sala, eu quis pedir pra experimentar, mas a senhora disse pra eu nunca pedir comida, que é coisa de favelado... que era pra ter orgulho e aguentar até o final... - dizia Artur se orgulhando em obedecer aos ensinamentos de sua mãe. - A uva é porque é roxa, e eu gosto de roxo, e...
- Só por causa disso ? - Ângela estranhava.
- Não mainha, eu amo o gostinho de uva. O gosto é docinho, eu engulo até as sementes. Eu vou estudar e trabalhar muito, muito, muito mesmo... juntar dinheiro e montar uma fábrica de uva...
Ângela ouvia tudo aquilo maravilhada com a noção de futuro de seu filho. Fazia tempo que tentava colocar esse ideal na educação do menino. Seria um sonho sendo realizado se daqui à 20 anos seu filho estivesse com uma família, casa própria e um bom emprego. Estes desejos traziam-lhe a estranha sensação de que o tempo passava rápido demais. Sentia saudades do tempo em que também ia pra escola, ou melhor, tentava. A escola nunca fazia sentido para Ângela, o fato dela ter que ir pra escola com fome, fazia ela pensar, ainda criança, que não desejava isso pra ninguém, ainda mais pro seus filhos. Já no primário Ângela já se imaginava sendo mãe, considerava essa opção como a salvação de sua miserável vida. Por um motivo desconhecido, passava a considerar que aquele seria o propósito de sua vida: ter filhos, cuidar deles, dar-lhes as melhores condições possíveis, educá-los com dedicação, e dar remédios quando estivessem doentes.
Porém, aquela mulher sonhadora percebeu que não tinha conseguido a vida que sonhava: seus filhos passavam fome, frio e humilhações constantes, e para piorar, não tinha esperanças que aquilo melhorasse à curto prazo. Seu marido estava desempregado e sobrevivia de bicos de pedreiro. a depressão estava quase dominando-a, o que a libertava daquelas ideias ruins era a voz de seus filhos, os olhares que eles lançavam à ela, e os sonhos e desejos que eles compartilhavam. Tudo isso trazia um ânimo e sobrevida àquela sofredora mãe.
- Mainha, mainha, porque seu olho tá molhado ? Tá chorando mainha ?
- Oh filhin, to não... peguei uma alergia, esse tempo seco, e...
- Quando a gente chegar em casa, eu faço um remédio pra você tá mainha ? - Sugeriu o inocente filho.
- Tá bom ! Agora vamos andar mais rápido, porque já está ficando escuro...
***
Os dois andavam apressadamente. A mão já cansada e ofegante, caminhava com dificuldades, recuperava as energias somente quando lembrava que, segurando sua mão, estava seu filho mais velho. Já Artur, com suas pernas curtas e frágeis, tentava acompanhar sua mãe, às vezes tendo que acelerar os passos atrás dela.
A curiosidade do menino o atrai aos mínimos detalhes por onde passava. Reparava tudo e todos. Possuía desde cedo um certo instinto questionador de todo menino da periferia. Perguntava, gesticulava, gritava logo após ver algo novo em sua vida, apontava o dedo pra todas as coisas que não sabia o que era. Desde que tinha encontrado sua mãe na saída da escola, decidira que iria observar minuciosamente o caminho de volta pra casa, e assim, quando chegasse anotasse tudo em seu diário.
Ao mesmo tempo, que assustava-se com aquela visão da realidade de onde morava, Artur sentia-se extasiado com o que via: botecos lotados de homens pretos e bêbados, uns jogavam sinuca, outros revezavam-se entre o truco e o dominó. Gritavam palavrões uns com os outros, pareciam felizes por fora e amargurados por dentro, cada um com seu cigarro ou um copo de pinga.
Foi quando virou a esquina que o garoto assustou-se. Sentia sua mãe apertar sua mão com muito mais força. Não entendeu muito o motivo pra isso, olhava pros rosto de sua mãe à procura de respostas. Bastou um olhar discreto dela para o menino entender o recado: havia algo de perigoso mais a frente no caminho pra casa.
De longe Artur ouvia alguns gemidos de dor logo a frente, percebia a mão de sua mãe transpirar intensamente, sentiu medo, tremedeira nas pernas, a vontade de defecar-se todo. Tenta distrair-se sem entender a razão de tudo isso estar ocorrendo.
Observa luzes de cores vermelha e azul piscando, elas são familiares para Artur. Desde sempre ouvia de todos em sua volta os perigos que estas cores representavam pra ele e seus amigos e familiares. Desde logo cedo ouvira histórias macabras em que estas luzes estavam sempre presentes.
A hora de enfrentar o medo chegara, estava disposto a defender sua mãe daquelas luzes, que pra ele simbolizavam morte, injustiça, sofrimento e agonia. Sua consciência quase inocente de pensar, quase o impediu de perceber o que já encontrava-se ao seu lado: cinco carros com as luzes piscando intensamente cercavam três homens, sendo um deles amigos de Artur. As chamadas de rádio e telefonemas não cessavam, à todo momento nomes e números eram ditados de dentro dos carros. Exatamente dois fatos que Artur viu o deixaram extremamente assustado e com medo: primeiramente foi quando ameaçou um choro ao ver um homem vestido quase igual um robô que aparecia nos filmes americanos, esse homem dava tapas na cara de seu amigo. O ápice de seu abalo emocional foi o que viu em seguida: um corpo escuro caído no chão coberto com alguns jornais em suas partes íntimas. Artur conhecia aquele homem, ele era irmão de seu amigo!
Segurou mais forte na mãe de sua mãe, que por sua vez percebeu a alteração do menino e decidiu atravessar a rua e ir em direção ao lado onde existe a famosa Mata do Roque. Artur não falava mais nada, estava paralisado fisicamente e mentalmente. Só andava por que entregava seus movimentos à sua mãe. Nada disso era atoa, era a primeira vez que via uma pessoa morta. Era a primeira vez que via sangue nas ruas e calçadas por onde passava. Era a primeira vez que presenciava as luzes vermelhas e azuis. Nunca pensou que viveria pra ver isso, tudo agora era realidade. Todo aquele baque servia para plantar as piores sementes que um menino daquela idade poderia semear: a do ódio e a vingança. Agora tudo o que seus amigos sempre falavam nas rodas de conversa, nos intervalos entre um jogo de futebol e outro, entre as caminhadas no meio do mato em direção ao capão pra soltarem pipas. Agora tudo fazia mais sentido, aquele mundo colorido e alegre no qual o menino vivia, desmanchava-se em mil pedaços. A todo momento enchia-se de perguntas e mais perguntas: "porque mataram aquele homem ?" - "será que foi um bandido ou um polícia?". Não aguentava o aperto no coração. Aquela pobre criança chorou, chorou e chorou. Sentia-se incapaz de ajudar aquele conhecido; Imaginou que talvez a solução talvez estaria em si mesmo, ainda havia chances de mudar seus planos para o futuro, mas qual seria o plano ideal para mudar que esse tipo de coisa acontecesse novamente?
Ao chegarem casa, cada um vai pra um canto do barraco, Artur joga a mochila no velho sofá e foi direto para o quarto. Ao observar o ocorrido, Ângela logo percebe que o que vira mais cedo na rua, tinha abalado seu filho. Ao mesmo tempo que lamentava-se por seu filho ter quer presenciar aquele tipo de coisa, ficava pensando como seria a explicação para todas a perguntas que estavam prestes à serem feitas pelo menino, pois sabia que a curiosidade ira tomar conta da mente dele. Refletia tudo isso enquanto andava de um lado pro outro pela sala/cozinha. Retomou a consciência. Olhou para os lados, pra cima, pra baixo... só miséria, sujeira e mal cheiro. Não tinha mais forças pra resistir à tanta coisa ruim. Ajoelha-se e imediatamente e inicia suas preces: "Óh meu Deus do Céu ! Por que me fizestes assim? Miserável, sem dinheiro, sem estudos... estou fraca Senhor, não aguento mais. A única coisa que me impede de me matar é o fato de ter que criar meus filhos... não tenho comida pra dar pros meus meninos Senhor. Não tenho dinheiro, a comida já acabou faz tempo e tenho que ficar pedindo esmola na rua. Prepara uma casa pra mim, pois quando chove a casa fica cheia de pingueiras e lama. Óh Pai ! Criador dos Céus e da Terra ! Onipotente e Onipresente ! Me livre dessa prova que o inimigo me colocou... se assim for a sua vontade... prometo rogar e agradecer em seu Santíssimo nome por toda a eternidade. Amém !
Já o menino alimentava o rancor que crescia em sua mente. Sentia-se extremamente incapaz, impotente e fraco. Pensou, pensou.. até que decidiu chamar sua mãe.
- Maiiiiiiiiiiinha !!! Cê ta ocupada ? Tem como vir aqui ?
Ângela corre em direção ao seu filho.
- O que foi Artuzinho ? - HAHAHAHAHAHA... - tentava rir no intuito de transmitir boas energias ao seu filho. Imediatamente percebe que foi em vão.
- Mainha, você viu aquele homem no chão ?
- Vi sim Artur, você viu né? O que você sentiu ?
- Eu senti várias coisas mainha... ódio, raiva, tristeza... a-a-aqui mo-mo-morre muita gente ?
- Oh meu fi... - cof cof cof - Não liga pra essas coisas não, tenta esquecer, Deus vai te proteger...
- Ah mais - tisc tisc tisc - Ele era irmão do meu amigo. E se fosse alguém da família ?
- Deus não vai permitir... clama à Deus, ele vai proteger a gente, e também...
- Nossa, tudo Deus, tudo Deus... porque Deus não ajudou ele ? Deus esqueceu dele ? É bem capaz, até porque a gente eu sei que ele já esqueceu...
PAAAAFFFFF !!!
- Respeita o nome de Deus !!! Duvide de Deus não, que coisa feia moleque imundo !!! Você tá numa família de crente... vai orar e pedir perdão pra Deus...
O menino ajoelha ao mesmo tempo que tenta segurar o choro e assim demonstrar toda sua macheza e virilidade à sua mãe, começa a ensaiar uma oração.
- Vou deixar você, vou apagar a luz pra você ficar ai na comunhão ! Vê se toma juízo !
Artur confere a porta. Toda a energia dentro daquele quarto muda completamente, foi como se estivesse ocorrendo ali uma mistura de diversas decisões tomadas desde o momento em que estava ouvindo sua mãe. Foi então que fechou os olhos subitamente e respirou fundo. Concentrou-se em sua própria respiração. Eis que em sua célula mais íntima, entoa as seguintes palavras em sua consciência:
- Deus, você me paga ! O senhor sabe que está errado ! Amém !
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